Sábado, 18 Maio

Identidade, representação e voz: o cinema de Ousmane Sembène

A obra completa de Ousmane Sembène estará em exibição no IndieLisboa, numa parceria com a Cinemateca Portuguesa, e é firmemente aconselhada a sua visualização.

Igualmente disposto a quebrar a barreira do problema da iliteracia africana e de contar as histórias do seu povo, em 1962 Sembène tirou um curso de cinema em Moscovo, nos estúdios Gorki, com duas figuras do cinema russo,  Marc Donskoï e Sergei Guérassimov,  abrindo a porta no seu regresso ao Senegal para filmes como “Borom sarret” (1963), por muitos classificado como o primeiro filme africano, ainda que em coprodução com França [tecnicamente, “Emitaï” foi o primeiro filme inteiramente senegalês na produção].

Nele, o realizador leva o espectador numa viagem por uma cidade bem demarcada nos princípios do colonialismo, assentes numa supremacia de uns em relação aos outros. É através de um carroceiro que transporta pessoas – e até mortos para os cemitérios – que viajamos entre dois mundos, o dos pobres, trabalhadores e camponeses, e aquele dos ricos, da cidade alcatroada e com prédios onde apenas alguns (o colonizador e os “assimilados”) podem transitar. Esse mesmo carroceiro terá problemas e perde o seu transporte e ganha pão por visitar sem autorização essa área, perdendo ainda o dinheiro da viagem que fez, já que o seu cliente, também ele negro, desaparece sem deixar rasto num automóvel logo à chegada e à confrontação do carroceiro com um polícia.

Essa temática do “roubo”, “pilhagem” e desonestidade – tal como o da burocracia (em “Borom sarret” um homem não pode enterrar o filho por falta de um papel) – será igualmente explorado em “Mandabi” (1968), farsa sobre um homem que recebe dinheiro de França proveniente de um sobrinho, mas que não o consegue levantar nos correios por não ter um documento que prove a sua identidade. Todo o filme é uma sucessão incrível de problemas burocráticos, a “pedinchice” generalizada e onde fica evidente a crítica ao sistema e também a uma nova geração de burgueses e vigaristas pronta a enganar os incautos tal como os colonizadores fizeram ao longo de séculos. É aqui também, a par de “Niaye”, que começa a alicerçar-se na obra do autor a abordagem à condição da mulher, já que o tio que vagueia pelo filme vive com as suas duas esposas e é frequentemente instigado – por uma sociedade profundamente patriarcal – a sobrepor-se a elas.

Mandabi

E se em “Mandabi” o emigrado – que envia dinheiro para a família – é um varredor de ruas em França, no seu projeto anterior, “La Noir de”, provavelmente um dos mais poderosos retratos da emigração e do neocolonialismo, a migrante é uma jovem senegalesa que parte com os patrões franceses para a Cote D’Azur com sonhos de dinheiro, belas lojas e liberdade – bem longe da pobreza e das praças onde diariamente se sentava a tentar encontrar trabalho, como uma peça à espera de comprador, em Dacar. 

Baseado numa obra do próprio autor, com várias diferenças formais, personagens e até conflitos, Sembène demonstra neste filme que o neocolonialismo afigura-se tão letal e destruidor como o colonialismo em si. Isso tudo através da figura de uma “ama” negra de uma família branca no Senegal que, quando viaja para território gaulês, se transforma numa mulher-a-dias, um “pau para toda o serviço”, sem descanso, dinheiro, amigos e atos de socialização – até porque não fala a língua francesa e é vista por todos como uma peça exótica que reage por intuição, “como os animais“. 

Essa nova forma de esclavagismo culminará dramaticamente num último terço pungente, regado a um preto-e-branco marcadamente desolador que o cineasta manipula na mise-en-scène com todos os elementos em profundo contraste, seja a simbólica máscara na parede, seja a cozinha repressiva que se torna o campo de trabalho e isolamento inesperado, seja a casa de banho onde a revolta contra a sua condição terá o seu ato libertador. Tudo ainda anexado a um quadro onde se acrescenta uma mala feita, uma fotografia familiar e a máscara vinda de África. Os restos – além da memória – que ainda a ligam ao continente onde nasceu.

Embora a opção de uma personagem feminina para contar esta história seja por si só um ato político libertador por parte de Sembène, a condição da mulher na sociedade africana seria igualmente explorada – em ligação direta com a religião e a sociedade patriarcal – em filmes como “Moolaadé”, sobre a dramática questão da excisão feminina, “Faat Kiné”, e também em “Xala”. Porém, já bem antes, as mulheres são na obra de Sembène um ponto de resistência e heroísmo, como no seu livro de 1960 descrito anteriormente, na curta-metragem “Niaye” ou em “Emitai”, onde o cineasta as coloca como resistência e proteção máxima  à colheita do arroz que as tropas coloniais querem surripiar: “As mulheres sempre foram uma parte importante da nossa história. Elas têm sido as guardiãs das nossas tradições e cultura, até quando alguns dos homens foram alienados durante o período colonial. O pouco que sabemos da nossa história devemos às nossas mulheres, às nossas avós. As mulheres africanas, fora do domínio das religiões “invasoras, são mais empoderadas do que em outro lugar. Em alguns países africanos, são as mulheres que controlam a economia de mercado. Há aldeias onde toda a autoridade está com as mulheres. E quer os homens africanos gostem ou não, eles não podem fazer nada sem o consentimento delas, seja casamento, divórcio ou batismo”.

Notícias