Sábado, 18 Maio

Identidade, representação e voz: o cinema de Ousmane Sembène

A obra completa de Ousmane Sembène estará em exibição no IndieLisboa, numa parceria com a Cinemateca Portuguesa, e é firmemente aconselhada a sua visualização.

Filmado com o dinheiro que o cineasta arrecadou por ter executado a curta-metragem Tauw (1970) –  “Emitaï” foi rodado na região onde Sembène nasceu, Ziguinchor. Numa entrevista em 1972, quando andou pelos EUA a pedir financiamento para um novo filme, ele comentou a obra e a sua factualidade histórica:  “Eu mesmo vim desta região rural e estes verdadeiros eventos do povo Diolla inspiraram-me a apresentar uma imagem da conduta francesa na minha casa e no meu território durante a minha juventude. Durante a última guerra mundial, os da minha idade, 18, foram forçados a se juntar ao exército francês. Sem saber a razão, fomos chamados para a libertação da Europa. Depois quando voltamos para casa, os colonialistas começaram a matar-nos, quer estivéssemos no Senegal, na Costa do Marfim, Argélia ou Madagascar. Aqueles de nós que haviam retornado do envolvimento da guerra francesa no Vietname em 1946 voltaram para  lutar contra os franceses. Nós não éramos iguais aos soldados negros de língua francesa  que ficaram em África e que fizeram parte do colonialismo em vez de se manifestar contra ele.

Essa mesma matança e menor poder na sociedade dos soldados negros regressados da guerra, em comparação com aqueles que ficaram no território a defender o império colonial, ficou exposta em 1988 no seu filme “Camp de Thiaroye”, onde um grupo de soldados que sobreviveu à 2ª Guerra Mundial e até aos campos de concentração se rebela após os gauleses decidirem não pagar o acordado, usando como esquema absolutamente patético o de converter mal os francos franceses na moeda local. 

Não é à toa que nesse filme a personagem de um aparente “tolinho” surdo que por lá anda se chama Pays, termo que significa África, segundo o cineasta, que em entrevista explicou um pouco mais dessa figura que guardava um capacete da Gestapo nos seus “troféus”. Ou seriam cicatrizes? “Nele vemos as experiências concentradas de todos os companheiros soldados da guerra em que alguns deles lutaram e morreram, mas outros prefeririam certamente fugir e se divertir”, explicou Sembène numa conversa em 1989, salientando ainda que essa personagem foi a única que estranhou o regresso à África após a guerra, especialmente depois de ver que o campo onde esse grupo de soldados foi colocado (Thiaroye) para a sua rendição da vida militar estava cercado de arame farpado, tal e qual os campos de concentração nazis que o traumatizaram. “Ele é o espectador do drama do passado, dos campos de concentração da colonização, muito disciplinado, muito sozinho, muito solitário”, disse Sembène, dando a entender que esse homem serve de alegoria a todo o continente.

Camp de Thiaroye

O próprio Sembène viveu e sofreu logo após a 2ª Guerra Mundial, mesmo com a cidadania francesa no papel. Após o serviço militar, que culminou depois da guerra sem receber o certificado de boa conduta (por resistir à disciplina militar), tal como muitos africanos ele embarcou para Marselha, onde trabalharia no porto e começaria a participar em movimentos trabalhistas, como a CGT (sindicato), cujos membros tinham ligação ao Partido Comunista Francês.

Foi, aliás, na sede do Partido Comunista que passou a ter acesso a todo um novo universo literário, começando ele mesmo a escrever poemas, como “Mome Cabob” (“Liberdade”, em português). Em 1956, ano em que decorreu o I Congresso de Escritores e Artistas Negros, na Universidade Sorbonne em Paris, na qual participou como ouvinte, Sembène lançou o seu primeiro livro com marcas profundamente autobiográficas: “Le docker noir”, sobre um estivador africano em Marselha na década de 1950 que passa por inúmeros problemas de integração e sobrevivência, mas que ambiciona tornar-se escritor. 

Foi, contudo, apenas em 1960, com “Les bouts de bois de Dieu”, um romance histórico que reconstrói as etapas da greve ferroviária Dacar-Níger em 1947-1948 através da ficção, que o agora escritor ganhou destaque, adquirindo igualmente um nova consciência que lhe fez seguir outros rumos. Um dos pontos da mudança foi a conscientização de que escrever em francês ia contra as suas ideias anticoloniais, e que precisava de outro meio, neste caso o cinema, para conseguir chegar às massas no seu país e ser uma voz representativa dos africanos, longe dos clichês que durante anos os europeus impuseram. Foi nessa mesma entrevista de 1973 que ele explicou a mudança de foco, não se ficando apenas pela escrita e avançando para a sétima arte: “Primeiro, 80% dos africanos são analfabetos. Apenas 20% da população possivelmente consegue ler. Além disso, os meus livros indispõem a burguesia, então dificilmente sou lido em casa. Os meus filmes têm mais seguidores do que os partidos políticos, católicos e muçulmanos combinados. Todas as noites eu posso encher um cinema. As pessoas aparecem independentemente de compartilharem as minhas ideias ou não. E digo, na África, especialmente no Senegal, até mesmo uma pessoa cega irá ao cinema e paga por um lugar extra para um jovem se sentar e explicar o filme para ele. Ele vai sentir e perceber o que está a acontecer.

Por volta de 1960, apesar da independência, a cultura e economia dependiam ainda muito de França. O próprio também explicou em entrevista: “O neocolonialismo é transmitido culturalmente, através do cinema. E é por isso que o cinema africano é  controlado a partir de Paris, Londres, Lisboa, Roma e até da América. E isso acontece porque vemos quase exclusivamente os piores filmes franceses, americanos e italianos. O cinema desde o início tem trabalhado para destruir a cultura africana e os mitos dos nossos heróis. Muito dos filmes que foram feitos sobre África são histórias de invasores europeus e americanos com a África servindo como decoração. Em vez de ensinar a nossa ancestralidade, a única coisa que conhecemos é o Tarzan. E quando olhamos para o nosso passado há muitos entre nós que não saem lisonjeados, que percebem a África com uma certa alienação (…) Os filmes difundiram um estilo europeu de caminhar, um estilo europeu de fazer as coisas. Até os gângsters africanos são inspirados pelo cinema. A sociedade africana está num estado de degeneração que se reflete igualmente na nossa arte imitativa.” Em outra conversa, Sembène evocou o crescimento da “arte do aeroporto”, onde figuras tradicionais que se vêm nas aldeias são imitadas e vendidas para estrangeiros, perdendo-se nelas qualquer elemento do seu significado original.

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