Sexta-feira, 19 Abril

A Ilha de Bergman: Mia Hansen-Løve “livre do realismo”

A Ilha de Bergman chega aos cinemas a 21 de outubro.

A 22ª Festa do Cinema Francês, a decorrer um pouco por todo o país até ao final deste mês, trouxe a realizadora Mia Hansen-Løve a Lisboa, para apresentar em antestreia o seu novo filme, “Bergman Island” (A Ilha de Bergman). A sua obra recebeu uma atenção especial na edição deste ano, uma distinção merecida por aquela que é, ao lado de Céline Sciamma, a mais celebrada realizadora francesa da sua geração.

Bergman Island” segue um casal de realizadores que vão passar um verão à ilha de Fårö, conhecida por ser o local onde o gigante do cinema sueco Ingmar Bergman filmou várias das suas obras e viveu parte da sua vida. Enquanto Tony (Tim Roth) dá algumas palestras a propósito dos seus filmes, Chris (Vicky Krieps) explora a ilha e escreve o guião para a sua próxima longa-metragem. Numa fusão entre a história deste casal e o filme que Chris está a projetar, o espetador assiste à estranha alquimia que é escrever uma ficção, vendo ser mescladas as várias linhas e camadas de “realidade” num todo enigmático.

Esse estranho complexo fílmico torna-se ainda mais complicado quando ouvimos a realizadora descrever a sua própria experiência de concepção e realização desta obra, juntando mais uma camada à mistura de “realidades” que formam “Bergman Island”. Ao C7nema, Hansen-Løve explicou como este projeto ganhou vida e encontrou em Ingmar Bergman uma inesperada casa que lhe permitiu abandonar o realismo que caracteriza o seu cinema. Eis a entrevista completa.

No passado disse que quando começa a escrever um filme, nunca começa com uma “boa história”, mas antes com uma emoção, um percurso ou algumas imagens. Como é que o projeto de “Bergman Island” se desenvolveu? A ideia para a localização veio antes ou depois da história?

Foi há muito, muito tempo, por isso não tenho a certeza se me lembro bem, mas a localização não veio primeiro, só depois. O filme tornou-se real quando a ilha de Fårö surgiu como o local onde o estabelecer, mas anos antes disso eu já tinha começado a ter a ideia de um filme que explorasse a inspiração a partir do retrato de dois realizadores. Eu queria um dia fazer um filme sobre a inspiração. Penso que todos os meus filmes lidam com a vocação de uma forma ou de outra, mas pensei que um dia iria fazer um filme que lidasse com isso mais frontalmente. Eu sou uma realizadora, tenho a minha vocação que é fazer filmes, e lido com isso de diferentes maneiras nos meus filmes, porque mostro pessoas que também têm a sua vocação. Mas precisava de fazer um filme um dia que olhasse para o que é escrever e tentar criar algo a partir da minha vida. Mas ainda não sabia como ou onde o fazer.

Acho que talvez para este filme tudo começou com a ideia de um filme que seria um retrato duplo que progressivamente se transformaria num só retrato. Começaria como um retrato de ambos e talvez até mais sobre ele enquanto ela ficaria em segundo plano, e depois o filme iria ironicamente tornando-se um retrato sobre a mulher. Esse movimento estava lá desde o início, mas creio que isso já foi há 10 anos. Estava a fazer outros filmes com esse projeto em mente, mas era muito abstrato. Depois foi quando Bergman morreu e foi feito um livro para o leilão, porque ele queria vender tudo e por isso fez-se um livro com as fotografias da ilha, das casas e de todos os objetos, foi nessa altura que a atração a Fårö se ligou a essa ideia de fazer um filme sobre inspiração.

A maioria dos seus filmes são descritos como semiautobiográficos, ou pelo menos muito pessoais. Dado que esta é a primeira vez que a personagem principal é uma mulher realizadora, este filme é ainda mais pessoal que os anteriores?

Mia Hansen-Løve

Não. Eu compreendo que as pessoas pensem isso, mas todos os meus filmes são tão pessoais que seria difícil para mim dizer que este é mais pessoal. Eu diria que este é mais frontal, mais direto. Os meus outros filmes são igualmente pessoais, mas muitas vezes de forma mais indireta. Neste filme eu tentei olhar para mim mesma ou pelo menos para a forma como escrever funciona para mim, de uma forma mais direta. É extremamente pessoal, o que não significa que é necessariamente autobiográfico no sentido clássico da palavra. Quando as pessoas dizem “autobiográfico” isso deveria querer dizer que é literalmente fiel ao que acontece na vida, mas nunca é assim. Há sempre imensas coisas que são diferentes. Por exemplo, eu nunca fui a Fårö com o pai da minha filha, e escrevi o filme sozinha quando estava na ilha. (…) Os meus filmes são sempre muito pessoais, mas mais do que autobiográficos eu diria que são reinterpretações da minha vida, das minhas experiências, através da ficção.

Então escreveu de facto este filme na ilha de Fårö. Evidentemente que a história e a cultura da ilha estão muito presentes no filme, mas a própria paisagem da ilha moldou ou influenciou o filme?

Penso que sim. As paisagens e os locais influenciam sempre muito os meus filmes e a minha escrita. São sempre espécies de personagens em si porque são sempre assombrados. Para cada um dos meus filmes houve sempre locais que foram motores da ficção, e isso é ainda mais verdade neste filme.

Eu tinha uma ideia sobre onde iria quando fosse [a Fårö] e quando começasse a escrever, mas penso que nunca escrevi com tanta abertura como quando escrevi em Fårö. Essa foi provavelmente a minha experiência de escrita mais entusiasmante e feliz de sempre, porque habitualmente eu sei muito bem onde vou quando começo a escrever e normalmente aquilo sobre que escrevo está desligado da minha experiência do quotidiano. Eu escrevi um filme passado na Índia, mas quando o estava a escrever estava em França, no meu apartamento ou numa zona rural francesa, não na Índia. Neste caso, o que foi tão entusiasmante e na verdade único foi que eu estava a escrever e de certa forma a experienciar o filme que estava a escrever. Claro que eu sabia um pouco onde estava a ir, sabia sobre o que é o que o filme era, sabia o significado de tudo, sabia o que queria capturar: queria encontrar uma forma cinematográfica que fosse a expressão ou réplica perfeita do processo de escrita para mim. É por isso que há este filme-dentro-do-filme, e um filme-dentro-do-filme-dentro-do-filme… Porque é assim que funciona para mim. Eu queria capturar isso, mas ainda estava muito aberta sobre como o escrever.

Conheci o Hampus na primeira vez que fui a Fårö. (…) Explorei a ilha com ele. Eu estava a ter experiências enquanto escrevia que estavam a influenciar diretamente a minha escrita, por isso havia um diálogo constante entre a minha ficção e a minha realidade, tal como mostra o filme. O filme lida com isso mesmo e, de facto, enquanto eu o estava a escrever, estava de facto a experienciar esse diálogo. Essa foi uma experiência de escrita muito poderosa e única para mim.

Referiu no passado que nunca tenta mostrar referências a outros realizadores nos seus filmes e que quanto mais admira um realizador, mais quer encontrar a sua própria linguagem. Neste filme, a influência de um realizador específico está muito mais presente: as personagens falam especificamente sobre os seus filmes e a sua vida. Como lidou com isto?

(…) Fazer um filme que tem esta ligação a Bergman, mostrar pessoas que são apaixonadas por Bergman e que exploram a sua ilha, pessoalmente eu não chamaria a isso fazer um filme em referência a Bergman. É um filme que lida com ele, não é sobre o estilo. Eu diria que é mais e menos que isso, é uma perspetiva diferente. Para mim nada muda quanto ao que eu disse sobre não querer imitar ou colocar referências nos meus filmes. Se eu quisesse fazer referência ao estilo de Bergman, teria de ter gravado o filme de forma diferente. Não teria gravado em Scope, teria feito close-ups, o que não faço. Sim, o filme está cheio de referências a Bergman enquanto parte das cenas e parte do assunto da ficção, mas não em termos estilísticos.

Descreve muitas vezes as suas relações com os atores como quase místicas. Como foi trabalhar com estes quatro atores (Vicky Krieps, Tim Roth, Mia Wasikowska e Anders Danielsen)?

Senti algo que já tinha experienciado antes. Às vezes alguma coisa acontece quando se está a preparar um filme que o torna bastante diferente do que se tinha imaginado, mas que no fim faz sentido (…). Foi exatamente isto que senti com Vicky Krieps, porque inicialmente era suposto ser a Greta Gerwig a assumir o papel dela. Eu adoro a Greta e ela teria sido ótima também, tenho a certeza, mas ela é muito mais americana e estava a levar o filme para um lugar que era mais próximo dela, provavelmente devido à sua personalidade, ao seu tipo de humor e a tudo o que a define.  Ela acabou por ter de partir porque ia realizar “Little Women”, e por isso pensei na Vicky, que eu tinha visto em “Phantom Thread” e por quem me tinha apaixonado. Pensei que era exatamente o tipo de atriz a que sou sensível, devido ao tipo de sensibilidade que ela emana, e também a conseguia ver como uma realizadora. Ela trouxe o filme para mais próximo de mim porque estava basicamente a trazer o filme para mais próximo de uma sensibilidade europeia. Embora ela fale inglês e interprete alguém que vive nos EUA, a sua presença, a sua cultura, o que emana dela, a sua melancolia, é na verdade muito mais próxima de mim. Por isso é engraçado e irónico porque o filme era suposto ter sido com a Greta mas agora que é com a Vicky sinto-me muito próxima dela. Não conseguia imaginar um melhor alter-ego. É como se de certa forma eu tenha sido forçada a trazer o filme para ainda mais próximo de mim do que tinha esperado.

A Mia [Wasikowska] esteve lá desde o início. Eu ofereci-lhe o papel muito cedo. De uma forma diferente, também me sinto muito próxima dela, mas ela leva-me mais aos meus tempos de adolescência. Para mim a Vicky é mais uma adulta e a Mia é mais uma eterna adolescente ou algo do género. Ela é mais como a parte da minha inspiração que vem de “Goodbye, First Love”. Eu fico muito comovida com a presença dela, há uma inocência nela a que sou muito sensível. Penso que ela também se comoveu muito com a personagem, (…) o que fez de ambas as nossas experiências de trabalho em conjunto muito fortes.

Cada ator tem uma história diferente… Mas sim, pelo menos quanto às raparigas no filme, eu sinto de facto essa espécie de ligação mística que já senti antes com outros atores.

Caracteriza o trabalho de outros realizadores, e também o seu próprio trabalho, como uma casa com diferentes salas. Que sala ocupa “Bergman Island” na sua casa de filmes?

Este filme ocupa uma sala onde eu pensei que nunca me seria permitido entrar. É por isso que este filme é bastante diferente e talvez a experiência de realização mais prazerosa de sempre para mim. É um pouco como o conto do Barba Azul: há uma sala em que é proibido entrar e é exatamente aí que queres entrar, e entras e é assustador, mas tinha de acontecer. Exceto que nesse conto tudo acaba mal, por isso não é um bom exemplo. É sobre este desejo de ires exatamente onde não é suposto ires. É esse o tipo de sala que “Bergman Island” é para mim.

Mas é também mais do que isso. Diria que quando estava a escrever sentia que algumas portas que nunca se iriam abrir, abriram-se. O que quero dizer especificamente é que esta é a primeira vez que me permiti escrever um filme em que estava a abandonar o realismo com diferentes camadas de realidade e ficção, em que estava a criar confusão. Todos os meus outros filmes estão interessados na clareza, eles tentam criar e procurar clareza sobre como contar uma história. É muito cronológico, muito realista, não há cenas de sonhos nem flashbacks. Eu não diria que são clássicos porque não acho que sejam, devido a todas as elipses nos meus filmes – mas são aquilo a que as pessoas chamam realismo. Pela primeira vez, graças à ilha e à magia daquele lugar, e acho que também graças ao facto de ser um local tão forte para meditar e criar, e por isso graças a Bergman e à atmosfera que ele criou nas suas casas, eu senti-me livre desse realismo. Não era uma intenção que eu tinha, não é como se eu o desejasse.

Agora estou a realizar outro filme e regressei ao realismo que define o meu cinema, mas fez sentido para este filme devido ao tema. Não é algo que eu possa decidir fazer, é apenas uma coisa que de repente se tornou possível devido ao contexto que o permitiu. Voltando à sala da casa, isso foi o que fez com que desta vez eu pudesse entrar nesta espécie de mundo de conto de fadas, e eu adorei isso. Também porque não sei se alguma vez conseguirei voltar a esse lugar, não sei se a inspiração alguma vez me voltará a levar lá. O que sei é que tenho desfrutado muito deste momento. 

Agora que o mencionou, o que nos pode contar sobre o seu novo filme, “Un Beau Matin”?

Ainda estou no processo de o filmar. Parece que todos os meus filmes têm de ser filmados em duas partes, mas não é de propósito. Houve uma parte de verão e uma parte de inverno. É muito, muito diferente de “Bergman Island”. É muito mais próximo da minha vida quotidiana porque se passa em Paris com atores franceses. É um retrato de uma mulher e do seu pai, que tem uma doença neurodegenerativa. É um retrato de uma mulher como foi “L’Avenir”, mas uma mulher mais nova. De certa forma eu vejo-o um pouco como uma continuação. Uma vez que eu tento fazer filmes que estão interligados para construir uma espécie de casa que vai crescendo, encontro ligações entre todos os meus filmes, e mais especificamente alguns com outros. Diria que “L’Avenir” e “Un Beau Matin” são uma espécie de díptico, como uma história de duas partes. Não é uma continuação direta, as personagens têm outros nomes e não é exatamente a mesma família, mas é uma espécie de continuação para mim.

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