Sexta-feira, 26 Abril

Festival de Brasília 2020 foca no real e discute o desmantelamento da cultura no Brasil

Pilar no casamento entre História e Cinema no Brasil, responsável por documentários de prestigio por um público de matar muita ficção de inveja, como “Anos JK” (800 mil pagantes) e “O Mundo Mágico dos Trapalhões” (1.892.117 de bilhetes vendidos), Silvio Tendler é quem comanda a 53ª edição do Festival de Brasília, a ser inaugurada esta terça-feira no Brasil, com projeções apenas na TV e na web. Até o dia 20, o público poderá acompanhar o evento – o mais prestigiante do seu país, reconhecido pela sua alta voltagem política – pelo Canal Brasil e na plataforma de streaming Canais Globo. A premiação ocorre dia 21, tendo como concorrentes a prémios cinco longas-metragens documentais e uma ficção.

Dia 15 de dezembro de 2020

“Espero que Esta te Encontre e que Estejas Bem”

(Natara Ney, Documentário, PE/RJ/MS, 83 min)

Canal Brasil, às 23h: Um lote de 110 cartas de amor trocadas por dois amantes nos anos 1950, descobertos em Mato Grosso do Sul, é o ponto de partida para este ensaio sobre pertença, pilotado por uma das maiores montadoras do Brasil.

Dia 16 de dezembro de 2020

“Longe do Paraíso”

(Orlando Senna, Ficção, BA, 106 min)

Canal Brasil, às 23h: História do pistoleiro Kim (Ícaro Bittencourt), que, jurado de morte após cometer grave erro na organização em que trabalha, tem a chance de se redimir diante de missão quase impossível.

Dia 17 de dezembro de 2020

“A Luz de Mario Carneiro”

(Betse de Paula, Documentário, RJ, 73 min)

Canal Brasil, às 23h: Um dos nomes mais respeitados do cinema nacional, sempre lembrado por seus trabalhos como diretor de fotografia em clássicos do Cinema Novo, Mario Carneiro é homenageado neste filme, que revive sua história como artista plástico e como diretor, além de rever suas parcerias com o cineasta Paulo Cézar Saraceni.

Dia 18 de dezembro de 2020

“Por Onde Anda Makunaíma?”

(Rodrigo Séllos, Documentário, RR, 84 min)

Canal Brasil, às 23h: Resgate histórico e cultural da célebre personagem imortalizado por Mário de Andrade na literatura modernista, celebrizado no cinema em filme de 1969, de Joaquim Pedro de Andrade, visto por cerco de 2 milhões de pagantes.

Dia 19 de dezembro de 2020

“Entre Nós Talvez Estejam Multidões”

(Aiano Bemfica e Pedro Maia de Brito, Documentário, MG/PE, 92 min)

Canal Brasil, às 23h: Autores propõem uma jornada experimental na Comunidade Eliana Silva – assentamento urbano de Belo Horizonte (MG) – a partir da perspectiva dos moradores ao longo da campanha presidencial de 2018.

Dia 20 de dezembro de 2020

“Ivan, O TerrirVel”

(Mario Abbade, Documentário, RJ, 103min)

Canal Brasil, às 23h: A trajetória e obra de Ivan Cardoso, o inventor do subgénero brasileiro “terrir”, famoso pela mistura irreverente de comédia com traços de chanchada, terror e suspense.

Avaliando este conjunto de filmes e curtas em concurso, Tendler diz que “criar é preciso, navegar não é preciso“, referindo-se à resistência de lutas do evento, que trará mais uma novidade este ano: a Amnistia Internacional Brasil tem a honra de anunciar a criação do Prémio Cosme Alves Netto, que destingirá o filme da 53ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (FBCB) que melhor represente os direitos humanos. O vencedor tem de encarnar os valores da Anistia. Tal prémio leva o nome de Cosme Alves Netto em homenagem ao estudioso e amante de cinema que, por duas décadas, foi o diretor da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM) e programador do Cinema Paissandu. A Amnistia Internacional é um movimento global com mais de 7 milhões de pessoas que enxergam a injustiça como algo pessoal. O compromisso da organização é com a justiça, igualdade e com a liberdade e a sua luta é pela proteção, garantia e defesa dos direitos humanos.

Professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) por anos a fio, respeitado pelas suas reflexões em torno de líderes políticos (como o presidente João Goulart), militantes sociais (como o guerrilheiro e poeta Carlos Marighella) e artistas resilientes (o poeta Ferreira Gullar e o cartunista Carlos Zéfiro), Tendler tem um longo histórico de vitórias em Brasília, com filmes biográficos (e ensaísticos) sobre o cineasta Glauber Rocha e o geógrafo Milton Santos. Na entrevista a seguir, o diretor fala sobre a curadoria deste ano, destacando um debate inaugural acerca da Cinemateca Brasileira, que teve as suas atividades prejudicadas em meio ao desmanche da cultura em solo brasileiro.

Qual é a importância estratégica de se encerrar o calendário cinéfilo brasileiro de 2020 com um Festival de Brasília que aposta, frontalmente, no documentário e resgata, na ficção, um mestre como Orlando Senna?

O Festival de Brasília é o mais importante, mais antigo e mais político dos festivais brasileiros. Ele não poderia deixar de existir no ano de 2020, diante do pandemónio das mais de 180 mil mortes por conta da covid-19, do fecho das instituições culturais, do fim do Ministério da Cultura. Por todas essas questões, devemos continuar sobrevivendo, existindo e dizendo “Presente!”. Esse é o contexto fundamental desse festival. O facto de a seleção ter sido centrada em documentários é uma discussão para os estudiosos… para saberem se isso é uma circunstância do momento ou uma realidade que veio para ficar no cinema. Das seis longas-metragens, cinco são documentários. O único que não é vem de alguém que possui uma longa história documental. É fundamental essa discussão e ela só antecipa o que está acontecendo nos Oscars, quando o Brasil envia o documentário dirigido pela Bárbara Paz sobre o Hector Babenco, e o Chile envia “Agente Duplo“. Vários outros países estão enviando documentários para competir como filme estrangeiro. Sobre a escolha do Orlando Senna: ele é um mestre, tem 80 anos, é seminal na cultura brasileira. Começa na Bahia dos anos 1960, em meio à Tropicália, e atravessa o século XX produzindo arte, cultura e cinema. Ele é um agitador, possui livros publicados, é um administrador cultural. É uma homenagem mais que merecida que esteja nessa edição.

Quais são as principais características estéticas e políticas dessa curadoria deste ano?

Esta curadoria será marcada como uma curadoria libertária, ampla e abarcadora. Nós acolhemos todos os géneros; os júris são plurais; temos a pluralidade também no júri de seleção e no júri de premiação de curtas. Temos todos os géneros representados nesse festival. Tivemos uma jurada trans na seleção. Temos uma jurada indígena nas curtas. Essa será a marca do Festival de Brasília, apesar dos tempos tenebrosos em que vivemos.

Qual é o papel simbólico do Festival de Brasília na história do cinema brasileiro e qual é a abordagem que você dá agora ao evento?

O papel simbólico do Festival de Brasília é ser o mais político e polémico do cinema brasileiro, desde 1965. Nele aconteceram grandes apresentações: lá foi lançado “O Bandido da Luz Vermelha“; por conta de “O País de São Saruê“, em 1971, o festival foi censurado e fechado por conta de um filme; em 1968, lá, nós vimos “Blablablá“, do Andrea Tonacci, e “O Bravo Guerreiro”, que anunciavam aquele momento prévio ao AI-5, paralelo ao processo de cassação do Deputado Márcio Moreira Alves, que o congresso negou e gerou o AI-5. Tudo isso está entrelaçado com o Festival de Brasília.

Como é a sua história com o festival?

A minha história pessoal com o Festival de Brasília não é diferente. Em 2004, lancei “Glauber, o filme: Labirinto do Brasil“; em 2006, lancei “Milton Santos” lá. Ambos os filmes foram reconhecidos e ovacionados por esse público fantástico do Cine Brasília. Fui secretário de Cultura lá em 1996 e fiz um grande festival, o da Retomada, com apresentação de “Baile Perfumado” e de “Um Céu de Estrelas“.

O que podemos esperar de debate acerca da atual situação da crise na Cinemateca Brasileira no evento?

Devemos esperar uma mensagem de alento e esperança. Vários cineastas que trabalham com arquivos darão os seus depoimentos. Cineastas apaixonados por cinema como Cacá Diegues, Eduardo Escorel e Roberto Gervitz. São muitos os cineastas que farão depoimentos nesse acontecimento, que marca a abertura do festival nesta terça-feira. Esperamos não só a reabertura e a retomada da Cinemateca Brasileira, que é o motivo da nossa reunião, mas a própria retomada do cinema brasileiro e de toda a cultura como um todo. A meta é recriar o Ministério da Cultura.

Quais são os seus próximos projetos como documentarista para 2021 e além?

Como estamos em uma pandemia, só estou conseguindo trabalhar em quatro filmes. Estou terminando “Arte Urbana“, um filme que estava sendo feito antes da Covid-19 se alastrar. Estávamos a fazer várias entrevistas com artistas de rua e, mesmo com a pandemia, continuamos por meio da videoconferência, que é a estética do confinamento. Assim, passamos a entrevistar os artistas de rua confinados em casa. Estou a fazer um filme em defesa do SUS (Sistema Único de Saúde). Não é um filme político, mas é um gesto de defesa do SUS. Outro filme em que trabalho fala sobre a centralidade pós-pandemia, passando pelo casino financeiro em que estamos. O último é sobre a história do sindicalismo brasileiro: “O Futuro é Nosso“. Estou trabalhando pouco, mas estou muito feliz. Terminei um filme sobre o violonista Chico Mário: “Melodia da Liberdade“. Ele era irmão do (sociólogo) Betinho e do (cartunista) Henfil que morreu, por conta da hemofilia, com SIDA, aos 39 anos. É um artista pouco conhecido no Brasil, mas fundamental.

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