Famoso no mercado audiovisual por ter criado um dos vigilantes com maior culto nas BDs na América Latina, o Doutrinador, transposto para o cinema e a TV, o desenhista e escritor carioca Luciano Cunha está, agora, às voltas com um dos maiores mistérios da cultura pop brasileira, transformado por ele em matéria de aventuras ilustradas: o Garra Cinzenta. Lex Luthor ainda nem pensava em usar kryptonite para destruir o Superman quando este génio do crime, digno dos algozes de 007, já aterrorizava o mundo, pelo menos o dos comics.

De 1937 a 1939, o cientista diabólico disfarçado sob uma máscara de caveira mobilizou os leitores do jornal de São Paulo “A Gazeta”, em tiras (strips) nas quais destilava a sua maldade numa narrativa com ecos do pulp noir americano, em desenhos assinados por Renato Silva e argumentos escritos por uma figura misteriosa, Francisco Armand. A real identidade de Armand já foi alvo de muita especulação. Antes de o Homem de Aço e do Homem-Morcego estetizarem a noção do cruzado de capa, o vilão nascido na indústria gráfica de São Paulo inaugurou as soluções narrativas que as artes sequenciais, mesmo pós “Dick Tracy” (detetive criado em 1931, por Chester Gould), desconheciam, sendo publicado no México, na França e na Bélgica – onde chamava-se “La Griffe Grise”. Este Diabolik latino inspirou umas cem páginas desenhadas, que integraram o “Almanaque Gibi”, da Rio Gráfica Editora, numa republicação de 1977, e viraram um encadernado celebrativo editado em 2011 pela editora Conrad. Mas é hora de o Garra ganhar material inédito.

Atualmente nas bancas com “Destro”, uma novela gráfica cercada de controvérsia (e de excelência no traço), Cunha prevê o retorno da lendário personagem em janeiro, pelo selo da editora Super Prumo, em parceria com o roteirista Sergio Martorelli e os artistas Lenon Berhelds e Lunyo Costa. Versado nas artimanhas mais insalubres da Química, o Garra Cinzenta atormentava um mundo decalcado da Nova York dos anos 1930, usando artifícios da ciência para cometer crimes e escapar dos seus inimigos, os inspetores Higgins e Miller. Mas, agora, Cunha propõe reinvenções, que antecipa aqui ao C7nema, já anunciando a vida do Garra para o Velho Mundo. 


Qual é o SEU Garra Cinzenta e o que ele representa acerca da tradição dos vilões de BD?


O Garra Cinzenta dos gibis (termo brasileiro para BDs) é, de facto, um vilão, inspirado tanto no Ogon Batto japonês original (criado em 1931 e que, trinta anos depois, virou o famoso herói dos desenhos Fantomas, quanto, coincidentemente, na personagem francesa Fantômas, de Marcel Allain e Pierre Souvestre. Foi o primeiro anti-herói brasileiro, com toques de tramas policial, terror e ficção científica, e tinha uma narrativa muito sofisticada para a época. A nossa versão acomoda o passado vilanesco do herói, mas trá-lo para o século 21, transformado num legacy character (tal como o Lanterna Verde Alan Scott e o Flash Jay Garrick estão para Hal Jordan e Barry Allen), com uma nova motivação. Os métodos dele podem, por um certo ângulo, ainda serem os de um vilão – mas, no caso, ele está enfrentando um mal ainda maior.

Quais foram os maiores desafios para trabalhar a personagem e qual é a aura de mistério que o cerca?

Os maiores desafios são, sem dúvida, manter uma honrosa fidelidade ao conceito da personagem original e, ao mesmo tempo, modernizá-la. A aura de mistério que o cercava, infelizmente, ficou no passado pois, até hoje, sua autoria traz essa energia

Qual é o lugar de heroísmo que cabe no universo do Garra?

O lugar de heroísmo é, justamente, essa nova luta contra um mal maior, que, na nossa releitura, é a centralização do poder e a falta de liberdade. Mas os seus métodos continuam viscerais e questionáveis. É um verdadeiro anti-herói.

Quais são seus planos para novas BDs do Doutrinador?

A sua nova BD está com o roteiro pronto e já era para ter sido lançada. Mas este foi um ano complicadíssimo, como todos sabemos. Tive dificuldades para firmar um desenhista para a série por causa da pandemia, já que não estou mais desenhando, só escrevendo. Mas, agora, firmamos um acordo com um profissional que atua para editoras estrangeiras, acostumado a prazos e espero terminar tudo em dezembro e lançar em janeiro de 2021. A publicação de toda a saga no exterior também está muito próxima de acontecer, com novidades muito em breve.

Como está a carreira das suas BDs e da editora Super Prumo na Europa?

Tem dois caminhos a acontecer. O Doutrinador tem um contrato quase assinado com a Arkhaven Comics, que distribui no mundo todo. Ele seria lançado, então, nos EUA e na Europa. Aliás, é melhor usar o selo da Arkhaven, chamado Dark Legion, que é o selo que eles usam para personagens de terceiros, ou seja, não próprios da casa. Provavelmente vai sair por esse selo. E está quase assinado um contrato mútuo entre minha empresa e essa editora. É um acordo de mão dupla: eles publicam o meu trabalho lá e eu o deles aqui. Vai ser muito bacana, estou animadíssimo com isso. Já até comecei a soltar uns teasers na web. Em relação ao Garra, tem um papo já adiantado por meio do Joe Bennett, artista paraense premiado, que tem contatos em França. E o editor já se interessou. E isso justamente pelo Garra ter sido publicado lá nos anos 1930. E também existem diálogos com o México, onde estou conversando com a editora Kamite, a principal de lá.