Tijolo editorial de 336 páginas, a BD “Nathan Never”, que acaba de sair no Brasil num delicado trabalho de impressão da Graphite Design, podendo ser adquirida online por quem estiver além mar, resgata um dos mais populares heróis dos fumetti, a banda desenhada à italiana. Torto para os padrões de carácter do heroísmo clássico dos comics, o código de conduta do agente Never subverte parâmetros morais do vigilantes habituais das BDs em prol não apenas dos contratos comerciais de segurança a preço fixo que assina, mas também de seu senso de justiça particular.

No início dos anos 1991, as suas peripécias pelos reinos do Amanhã mobilizaram a imaginação dos brasileiros, em revistas lançadas pela editora Globo. “As tramas de Nathan Never carregam todo o caldo cultural da ficção científica feita nos últimos 30 anos, com um herói durão”, diz o editor Wagner Macedo, da Graphite, cuja edição inclui uma coluna de artigos ensaísticos, cujo nome é “Arquivos Alfa”, escrita pelo filósofo Edgar Smaniotto.

Há tempos, a Bonelli mantém os seus pés fincados em Portugal e no Brasil pelas páginas do Oeste selvagem de Tex, filmado com Giuliano Gemma nos anos 1980, e pelas histórias de terror de Dylan Dog, já encarnado por Rupert Everett e Brandon Routh. Com o retorno de Nathan Never, a dimensão sci-fi da editora milanesa retoma suas atividades em língua portuguesa, somando-se à edição de Brad Barron, outro herói ligado às ciências. Never usa engenhocas científicas – e doses fartas de raio laser – para debelar o mal, em um momento no qual a Terra exteriorizou a segurança pública. Agências como a Alfa são contratadas a peso de ouro para proteger os cidadãos que pagam por proteção. Litros de chuva ácida empapam os caminhos pelo qual Never se esgueira em prol de uma particularíssima noção de Justiça. Noção esta que só faz ferver o caldo de um dos géneros mais aclamados da indústria pop.

Desde a invenção do cinema, em 1895, em paralelo ao surgimento dos quadradinhos com balões, iniciado por Richard F. Outcault e o seu “The Yellow Kid”, a indústria do pop ampliou as suas posses sobre os domínios da fantasia, onde já havia se alicerçado pelas vias da literatura de folhetim e por espetáculos teatrais. Já de cara, nos ecrãs, a pioneira da direção Alice Guy Blanché (1873-1968) ajudou a ficção a dar os seus primeiros passos com “La Fée aux choux (A Fada do Repolho) em 1896, que pôs a magia em cena. Mas o mergulho do cinematógrafo nas águas do fantástico logo mirou para o infinito e além, galgando as galáxias com “Le Voyage Dans La Lune” (Viagem à Lua) em 1902, de Georges Méliès (1836-1938). Nessa curta da era silenciosa das telas, um feiticeiro enchia um foguete de gente e caia, sem capacete nem roupa de astronauta alguma, no olho de uma lua feita de queijo – um brie dos bons. Ali, era inaugurada uma expedição à sci-fi, fosse ela futurista, retro, distópica ou com cara de odisseia, como “Star Wars”. Essa imersão fez com que as primeiras séries cinematográficas, feitos nos 1930 e 1940, tivessem como o seu principal interesse vigilantes intergalácticos decalcados das BDs, como Buck Rogers e Flash Gordon. Foi a fantascienza, o verbete à italiana para ficção científica, quem serviu de madrinha ao casamento dos quadradinhos com a indústria do audiovisual, sacramentando um histórico de sucessos, em que os autores deram aos estúdios uma série de boas ideias. Da mesma forma, cineastas de timbre autoral emprestaram à BD premissas geniais. A figura de Nathan Never é um caso desses.

Em 1991, Michele Medda, Antonio Serra e Bepi Vigna criaram NN para a Bonelli Editore sob a inspiração cult formada em torno de “Blade Runner” (1982), versão de Ridley Scott para a literatura de Philip K.(indred) Dick (1928-1982) em “Será que os Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?” (1968). O filme com Harrison Ford trazia um futuro estilizado à moda cyberpunk, com mulheres e homens sintéticos, chamados de Replicantes e famosos pela sua força de construção metálica. Mais impactantes do que esses frankensteins de carbono, eram os monólogos do holandês voador Rutger Hauer (1944-2019) na pele artificial de um replicante com instinto anarquista. Nas bilheteiras, a aventura do (então jovem) realizador de “Alien: O 8º Passageiro” (1979) pelas franjas da sci-fi robótica deu menos dinheiro do que se esperava. Mas a consagração chagaria depois. 

Reza a lenda que o maior ponto fraco de Scott é a sua vaidade, expressa não só pela grandiloquência das suas produções para por um desejo de alcançar um lugar que os cineastas filósofos do cinema (Stanley Kubrick, Terrence Malick) conquistaram pela transcendência dos seus cógitos. Não por acaso, dizem que “Prometheus” (2012) foi uma tentativa dele fazer um “A Árvore da Vida” ou um “2001 – Uma Odisseia no Espaço”. Mas, na prática, a fragilidade maior do inglês está no seu joelho.

Em 2010, quando “Robin Hood” foi escolhido para abrir o Festival de Cannes, ele não teve como comparecer à abertura por conta de uma operação às pressas na rótula. Aliás, esta fez-se doer em muitos dos seus sets, como em “Perdido em Marte” (2015), o seu último sucesso de público e crítica.  A fragilidade da sua integridade óssea já foi manchete dos jornais várias vezes, mais até do que sua mão “podre” para a escolha de projetos: como “Hannibal” (2001) ou (o fraco) “Body of Lies” (2008) que comprometeram – e muito – a sua imagem como campeão de bilheteiras e como um realizador refinado. Só não fizeram mais estragos porque – bem acompanhado – Scott fez da sua perna doente um assunto que rendia mais pano para mangas nos jornais do que os seus deslizes estéticos. Só que nos anos 1990, quando “GI Jane” (1997) saiu, não houve nenhum assessor ou publicista que pudesse livrar a sua cara, frente a toda a ironia que cercou essa produção embriagada de sexismo.  

Mas os ataques sazonais não dilaceraram o património milionário que Scott construiu vendendo bilhetes e fazendo publicidade, tornando-se um rei dos anúncios comerciais. Para ficar só na esfera do cinema, as suas longas-metragens ultrapassam com frequência a fronteira dos 100 milhões de dólares de arrecadação, sendo que alguns obtiveram prestígio tão alto quanto o seu faturamento. Foi o caso de “American Gangster” (2007) e de “Black Hawk Down” (2001), projetos nos quais ele exercitou o seu belicismo com mais requinte plástico e estofo político. Artesania, ele tem, de modo inquestionável. O problema em relação a Scott é observar a sua autoralidade. Embora tenha iniciado a sua carreira como realizador com três filmes magistrais – “The Duellists” (1977); e os já citados “Alien” e “Blade Runner” – que influenciaram a estética comercial de Hollywood nos anos que se seguiram, ele nunca encontrou para si uma identidade autoral, seja em tema ou em forma, que o pusesse entre os gigantes.  Essa dor é a maior do que a do seu joelho.  Existe um Scott que domina o realismo com brutalidade e secura (“Someone to Watch Over Me”; “Black Rain”; “Matchstick Men”) e outro que lidera no épico, seja na linha da fabulação (“Legend”) seja no trilhar da História (“Kingdom of Heaven”; “1492”). Nenhum deles vai além do âmbito do bom artesão. Mas sempre que ele investe nas estrelas ou no Amanhã ele consegue algum triunfo de artesanato, assim como Medda, Serra e Vigna trinfaram na figura de Never.

Pensamos a figura de Nathan a partir de uma inquietação, do fim dos anos 1980, de pensar como seria o Amanhã”, disse ao jornal O Estado de S. Paulo o roteirista Antonio Serra, um dos pais da personagem, em entrevistas no início dos anos 2000.

Serra criou o mais aguerrido operativo da Agência Alfa em parceria com dois conterrâneos seus da Sardenha, Michele Medda e Giuseppe Vigna em 1988. Três anos depois, Never chegou às bancas, cheio de influências do filme “Blade Runner” (1982). “Quando Nathan surgiu, a gente via o futuro com romantismo. A personagem carrega essa marca romântica de olhar o futuro como um espaço de mistério”, disse Serra em entrevista de 2005.  

Nos enredos de Serra e de outros talentos dos fumetti, Never usa engenhocas científicas – e doses fartas de raio laser – para debelar o mal. Agências como a Alfa são contratadas a peso de ouro para proteger cidadãos que pagam por proteção. Litros de chuva ácida empapam os caminhos pelo qual Never se esgueira em prol de uma particularíssima noção de Justiça. Uma noção que não se limita ao maniqueísmo e nem a uma noção clássica de Bem ou de Mal. Never faz o que é certo, mas nem sempre esse “certo” é escrito sobre linhas retas. Em sua escrita, o “torto” queima como raio laser.