Segunda-feira, 20 Maio

As Verdadeiras Mães: Naomi Kawase e como o carinho maternal pode salvar o mundo

Com uma longa carreira marcada por documentários e filmes de ficção, onde se destacam obras como “A Quietude da Água” (2014) e “Uma Pastelaria em Tóquio” (2015), Naomi Kawase regressa aos cinemas portugueses com um melodrama em torno da adoção.

Mais acessível para o grande público que o seu último registo no cinema, “Vision”, “As Verdadeiras Mães” segue um casal que adota uma criança, mas é confrontado anos depois com o regresso da mãe biológica, que quer o filho de volta. “Há que ter em conta que o “Vision” era um guião original meu, foi rodado nos bosques da minha área natal e tinha muito maior importância a relação entre as pessoas e a natureza. Tinha um tom mais filosófico e a paisagem tinha uma importância muito maior. No caso do “As Verdadeiras Mães” havia já um livro à partida [assinado por Mizuki Tsujimura], como sucedeu no “Uma Pastelaria de Tóquio”. Neste caso o que tentei foi retratar da forma mais fiel possível o que estava no livro.”, explicou-nos a cineasta japonesa por videochamada numa conversa com a imprensa que decorreu no último Festival de San Sebastián, onde a película estreou com o selo de Cannes 2020.

Como se pode perceber pela descrição da história, o tema da maternidade volta a ocupar espaço preponderante na cinematografia da nipónica, que admite que o que a levou a fascinar-se pelo livro é que este adoptava a perspetiva do menino, Asato: “Eu mesmo sou uma filha adotiva, por isso senti uma experiência comum à que tinha vivido. Criar um filho não é uma questão de meios económicos, nem tão pouco de laços sanguíneos, mas sim de coexistência, de gerar uma relação de carinho e amor que cria o laço pai/mãe-filho. O pequeno Asato tem uma tal luminosidade que consegue irradiar e unir a mãe biológica e a adotiva. Era esse o ponto que mais me interessou no livro.

Já quanto à questão da maternidade, Kawase relaciona essa atração com as palavras de um tio que tinha na ilha de Amami Ōshima, no sul do Japão, de onde provém: “Tinha aí um tio que dizia sempre que a única coisa que podia salvar o mundo era o carinho maternal. Quando disse aquilo, impressionou-me muito. Temos que ter em conta que todos nós somos filhos de alguém e que de alguma forma criamos também alguém. Esta relação, entre o que é a harmonia, a paz a que o mundo pode chegar, e o carinho materno é o que faz com que as minhas fitas voltem sempre ao tema da maternidade“.

Hiromi Nagasaku e Aju Makita: duas atrizes, duas forças naturais

Já com uma longa carreira no Japão, tendo conhecido a fama nos seus tempos juvenis, Hiromi Nagasaku assume em “As Verdadeiras Mães” o papel de Satoko, a mãe adotiva, uma mulher trabalhadora, com êxito e que de alguma maneira pertence à esfera das privilegiadas. “Mas claro, existe a questão do marido ser estéril e não poderem ter filhos”, acentua a cineasta, explicando a sua tomada de decisão de “deixar o trabalho e criar o seu filho, permanecendo no seu intimo com uma espécie de tristeza oculta”.

A atriz, a Hiromi Nagasaku, conseguiu muito bem representar esse papel”, diz-nos Kawase, elogiando de seguida a menos experiente Aju Makita, que desempenha o papel da mãe biológica de Asato: “Quando a conhecemos tinha 16 anos. Não tivemos nenhum problema com ela no que toca a aprender o guião. O seu papel é o de uma jovem que, apesar de ter um filho, tem de separar-se dele. Isso reflete-se muito bem na tristeza da personagem, no choro, no rosto carregado. Creio que em todo o momento tem aquela luz que têm as estrelas de cinema. Acho que daqui para a frente é uma atriz que vai dar muito que falar, que as pessoas vão apaixonar-se pela sua imagem, e terá uma grande carreira.”

Flashbacks ou recordações?

Um dos pontos centrais na forma como Naomi Kawase estrutura a sua narrativa é o trabalho de montagem, com recurso a aparentes flashbacks, que explicam o passado das personagens. Se muitas vezes condenamos alguém por uma atitude que vemos refletida no presente, nessa viagem temporal percebemos as razões: “Mais que flashbacks, são recordações. Prefiro chamá-los assim. A maneira como está estruturada a montagem, por exemplo, numa cena em que estão todos juntos, e imediatamente a Satoko recorda quando estavam a comer. É algo muito mais subjectivo do que podemos chamar de flashback. Quis encadear a narrativa à base de recordações“.

Documentário e ficção

Seja ficção ou documentário, a cineasta tem sempre o mesmo método de trabalho, que passa por antes das filmagens viver [literalmente] com a equipa do seu filme, de forma a preparar melhor os atores para os seus papéis. Essa forma de agir levou a grande surpresa de Hiromi Nagasaku, mas que Kawase acha que funcionou na sua plenitude.

Quanto a determinados momentos do seu “As Verdadeiras Mães”, em particular na maternidade e nas instalações da organização de adopção, Kawase recorda que já antes fizera um documentário sobre a instituição e que, normalmente, eles não permitem filmagens nas suas instalações. Excecionalmente deram autorização à realizadora para usar o espaço, tendo sido a própria Kawase a carregar a câmara e a filmar diretamente essas cenas.

Já quanto à cena em que o casal com problemas de infertilidade assiste a um programa de TV documental sobre esta organização que lida com a adoção de crianças, o registo documental do vídeo esconde o trabalho de ficção por trás dele. “Gosto de dar este toque pois dá mais realismo”.

Novos projetos

Está confirmada a colaboração no futuro de Naomi Kawase com o produtor Luís Miñarro, com quem já tinha trabalhado em “A Quietude das Águas”. Foi em San Sebastián que o conheceu e depois da parceria em 2012, ambos tornaram-se amigos: “No festival em que trabalho, o Festival Internacional de Cinema de Nara, fizemos uma secção chamada Foco na Catalunha, para promover o cinema e cultura catalã, e além de mostras gastronómicas projetamos 6 filmes catalães realizados por mulheres. A ideia era que o Luís e as realizadoras virem ao Festival este ano, mas perante a situação que estamos não podemos. Mas no ano passado, o Luís pôde vir à ilha que falei há pouco e foi aí que consertamos a ideia de fazer outro filme juntos.

Além disso, já em 2021 poderemos ver um novo “trabalho” da realizadora, já que foi convidada a fazer um filme dedicado aos Jogos Olímpicos de Tóquio, que foram adiados por um ano devido à pandemia Covid-19. Esse adiamento não trouxe problemas à realizadora, que confirmou que será ela a filmá-lo. “Estou em permanente contacto com o Comité Olímpico. Não vai ser só um trabalho documental sobre os Jogos Olímpicos, mas também como cada país está a lutar contra esta pandemia”, concluiu.

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