Sexta-feira, 19 Abril

Elia Suleiman: «a Europa colabora com Israel nas suas atrocidades»

O cineasta Elia Suleiman deseja encontrar o Paraíso sob a forma que seja, e proclamar a sua orgulhosa identidade: “Sou Palestiniano (ou Palestino, conforme preferirem) ”. É com essa declaração que quebra a sua personagem emudecida e passiva, que reflete as suas ideias e a visão perante o Mundo o qual quer integrar.

Vencedor de uma Menção Especial no Festival de Cannes, “It Must Be Heaven” (O Paraíso, Provavelmente), a sua quarta longa-metragem, é uma obra que não esquece raízes e tradições, partindo de Nazaré (Israel), passando por uma Paris povoada de beldades e até a um “angelical” EUA. Como considera o próprio Suleiman, ser palestino é ser cidadão do Mundo, é persistir numa nacionalidade que toda gente nega e negligencia.

Um dos grandes filmes do ano chega por fim a Portugal (02/07), numa altura em que os confinamentos são cada vez mais diluídos na nossa realidade. Eis um cineasta fala-nos numa linguagem universal e burlesca (assim como este Mundo parece restringir-se).

O C7nema teve o privilégio de falar com o realizador durante a edição de 2019 do Festival de Cannes, uma conversa que levou-nos a metáforas que afinal são memórias, acenos a Eastwood e à urgência de uma identidade palestiniana.

Comparativamente aos seus filmes anteriores, mesmo que seja mais bem-humorado e esperançoso, “It Must Heaven” é um filme construído por vias da sua frustração …

A minha frustração conta, mas prefiro a minha perceção. Não tenho a certeza se usei frustração para construir este filme. Mas o filme soa frustrado, é isso?

Possivelmente há um sentido de deceção, porém, como surgiu a ideia para este seu novo trabalho? Como concebe estes seus “sketches”?

Usei acontecimentos que experienciei há 20 anos, diretamente ou indiretamente, e tentei colocá-los numa narrativa. Muitas delas remetem anos antes dos meus primeiros filmes. Mas em “It Must be Heaven” tentei utilizá-los e espelhá-los na narrativa do filme, contudo, como acontece em quase todos os filmes em que trabalho, encontro sempre as ideias, as imagens, os sons, mas não consigo consolidar tudo numa história. O que faz esta personagem ir de um lado para o outro? Foi nisso que trabalhei, dar a esta personagem um motivo de existência, um conflito, uma vida dentro a narrativa que lhe propus, e o pretexto encontrado foi este produtor em Paris.

Falando em “produtor”, devo acrescentar que existem duas situações que me inspiraram alguns eventos deste filme. A primeira foi o encontro com um produtor há duas décadas com o meu primeiro filme. Ele leu o guião e questionou quem iria carregar a estrutura dramática do filme. Depois de uma amigável discussão, até porque somos amigos desde então, ele voluntariou-se para ser esse dispositivo narrativo.

O segundo evento foi quando conheci Clint Eastwood. Apresentaram-me a ele como “um realizador palestino que faz filmes engraçados” [risos]. Lembro-me perfeitamente que na altura não consegui dizer nada, somente acenar. [risos].

Obviamente, que muitos destas sequências e ocorrências foram ficcionalizadas para o bem do filme.

Comparativamente com as suas obras anteriores, “It Must Be Heaven” desloca-se pelo mundo fora (França, EUA). Acredita que é possível transcrever o seu humor às suas personagens em locais mais distintos que as da sua terra natal?

Cada país tem as suas próprias personagens. O humor de um país não é considerado humor noutro. Ao contrário do que se pensa, o humor não é universal. O mesmo se pode dizer dos maneirismos e da cultura. É como se cada país tivesse a sua própria emoção, sensibilidade e gosto. Só abordo os países onde eu estive. Por exemplo, amanhã ou depois chegarei a outra terra estrangeira. Tal já me dá legitimidade para o abordar numa narrativa. Gosto de pensar que um cineasta é um cidadão do Mundo.

Este filme, mais que tudo, precisa de saber onde ir, que sítios vai e, obviamente, conhecê-los.

Nos seus filmes encontramos uma espécie de heterónimo seu. Digo a sua participação e a transformação disso numa personagem corrente a lembrar Charlot de Chaplin ou Hulot de Jacques Tati, reproduzindo também o seu silêncio. Em “It Must Be Heaven” você quebra esse silêncio para dizer “Eu sou palestiniano”, como fosse um “statment“.

Nunca falei nos meus filmes, até então, pelo que achei que seria uma mudança interessante e inesperada aqui. Como dizes, uso a posse da palavra para mencionar “ Nazaré” e “palestino”, que em certa parte é como não dissesse rigorosamente nada.

Não gosto de trabalhar com diálogos, nem sequer monólogos, nos meus filmes. Por um lado é menos trabalho que tenho na conceção destes, mas acima de tudo é porque prefiro centrar-me nas imagens, emoções, e através disso elaboro um diálogo metodológico.

Por norma, confundimos linguagem com informação, o que não é verdade. Podemos encher-nos de palavras e dizer rigorosamente nada, e essa presunção leva-nos a minimizar o poder das imagens. Com isto, o que pretendo é construir uma narrativa fílmica com base nessas e não dependente das palavras.

Para mim, as palavras tem uma função de continuidade para com a narrativa, portanto, são economizadas e restringidas a essa necessidade. Quando escrevo guiões trabalho com diálogos, que em fases posteriores de revisão vão sendo constantemente cortados e substituídos por alternativas imagéticas. Durante a rodagem, mais diálogos são cortados, até sobrar a linguagem cinemática pretendida. Ou seja, falar nos meus filmes, somente o essencial do essencial. O aqui é resgatado. É o prazer de extrair uma experiência cinemática nas imagens.

Existe uma cena no seu filme que gostaria que me falasse. A sua personagem encontra uma mulher num olival que transporta dois cestos, um de cada vez.

Aquilo é iogurte! Ela é uma beduína que vende iogurte.

Certo, mas ela pousa um desses cestos, recuando um passo para ir buscar o outro, avançando até parar e repousar o mesmo cesto. Assim, volta a recuar e transporta o que deixou atrás de si. Isto sucessivamente. É uma metáfora? “É preciso recuar um passo para avançar dois”?

Não é uma metáfora. Vocês não encontrarão muitas metáforas nos meus filmes. Esta mulher existiu na minha vida, era uma beduína que vivia a 10 / 20 km da minha casa em Nazaré, este era o seu meio de transportar aqueles recipientes de iogurte e de vendê-los na cidade. Ela fazia exatamente aquilo, pois não tinha dinheiro para ir de transportes.

A minha mãe cuidava dela, assim como também dos seus filhos. Aliás, teve uma relação de amizade muito forte com um deles. Eles praticamente tornaram-se parte da minha família. E foi através desse meu amigo, que era pastor, que captei as minhas primeiras imagens. Aliás, o meu primeiro registo foi de uma cabra em perfil, simplesmente a ruminar [risos]. Fiquei fascinado com aquilo. Dez minutos de uma cabra a ruminar, e foi com isso que me aventurei no cinema. Ainda hoje guardo aquela ruminação.

Pensa em utilizar tais imagens num futuro filme?

Talvez. [risos] Fazer uma espécie de “souvenir” da minha vida.

Outra sequência curiosa do seu filme é a estadia parisiense da sua personagem, ao som de “I put a spell on you”, bastante recorrente na sua filmografia. Aliás, ele observa uma cidade povoada por belas mulheres. Esta é a sua ideia de paraíso [risos]?

Tudo que se vê neste filme é um pretexto para que a minha personagem vá de um país para o outro. Tentando com isto, encontrar a sua própria definição de paraíso. Esta personagem tem conhecimento que o seu país está numa guerra profunda, mas acredita, através desta viagem, que a guerra, simplesmente, está em todo o lado.

Mas não [risos] … a definição de Paraíso aqui não é um local povoado de belas mulheres, tudo isso faz parte do humor.

Acerca do momento em que a sua personagem rompe um silêncio de 20 anos, seguindo por uma reação inesperada de quem se apercebe da sua nacionalidade. Como palestino, já testemunhou ou experenciou algo do género, tendo em conta que você utiliza retalhos da sua vida na ficção?

Acredite, já tive reações piores. Há uma ideia errada que nós, palestinos, somos israelitas árabes que vivem nas bordas da fronteira do Estado. Mas ainda bem que tocas nesse assunto, porque Israel não legitima os palestinos, ou seja, a nossa nacionalidade é como não existisse. Somos totalmente negados das nossas raízes culturais e nacionais. Os palestinos têm uma identidade própria, um passado que nem sequer é explorado pelos media. A comunicação social não quer saber de nós, tem o mínimo de interesse em dar a conhecer de onde nós viemos.

Onde estávamos antes de 1948? Para muitos, a história daquele local começou em 1948. Errado! Nós já lá estávamos antes disso. Apenas ocuparam a nossa terra, isso é mais que sabido, encostam-nos cada vez mais próximo da fronteira e chamam-nos de Hamas, como se fossemos todos terroristas. Foi e é uma Ocupação, não há que negar. Israel é fascista desde do momento, que nós palestinos, nos lembramos. É um facto que poucos querem assumir.

Depois da Ocupação, veio a Opressão, e nisso temos que ter noção que a Europa é a causa disto tudo. O “é” esquecido por muitos órgãos. Porém, essas questões identitárias são por norma algo que não utilizo nos meus filmes, exceto em “O Tempo que Resta“, onde conto a história do meu pai, que foi torturado durante a ocupação de Nazaré. Com este “It Must Be Heaven”, através do seu humor e da repetição da palavra Palestina integrado na sua ação, espero que consiga com que os espectadores investiguem e se interessem na nossa jornada histórica enquanto povo. Que por fim questionem: quem são estas pessoas?

Só quero que as pessoas percebam que isto tudo não é uma causa perdida, e que após 70 anos de tormento, tortura e discriminação, isto não possa ser transformado num assunto intocável.

Causas perdidas? Refere ao tratado de “paz” assinado por Donald Trump? Acha que a situação da Palestina piorou sob a luz desse documento?

Trump não trouxe nada de novo, apenas descortinou aquilo que todos nós sabíamos, os problemas que lidamos diariamente e que tem sido cada vez mais difíceis de lidar. Este presidente perpetuou ainda mais o lobby das armas, o que é do conhecimento de muitos.

Todos veem Trump como o grande vilão, mas ele só funciona perante uma herança anos a fio de puro mal. Isto não é culpa de uma só personagem. Aliás, ele é um fantoche das multinacionais, da indústria de armamento, etc.

Não acredita na coexistência dos dois Estados?

Não. Não acredito nos dois Estados. Isso é uma presunção ridícula, principalmente nos dias de hoje, porque já não existe Palestina. Tudo foi anexado.

Simplesmente é absurdo acreditar em dois estados utopicamente coexistentes, porque isso é assumir aquilo que nos é imposto durante anos. Que “um povo cai do céu” e começa a partilhar espaço com outro povo, ambos culturalmente distintos. Viver harmoniosamente neste caso, é converter todos os povos a um só, e com isso negligenciar as suas respetivas identidades. Não é justiça alguma, porque muitos perderam as suas casas, terras, famílias, para “dar” a vez a outros.

Como é possível, geograficamente e politicamente, existirem dois Estados? Principalmente tendo Israel no Estado que é hoje. Isso nunca vai acontecer. Essa utopia não existe.

Acredita que o seu cinema poderá falar aos espectadores sobre a situação palestiniana? Tentar com isso “descortinar” algo que muitos desejam ocultar?

Falo por mim, não existe mais nada para dizer. Esta ocupação tem que terminar! Já não se trata de informação nem educação. Toda a gente sabe o que Israel fez e com quem colaborou nesta ocupação. Falo da Europa. Porquê falar de Trump, América ou pro-Israel, se foi a Europa que permitiu isto. Eles foram e são os culpados.

A Europa tenta mostrar uma face humanitária, mas no fundo colabora com Israel nas suas atrocidades. Mas, por momentos, vamos sair da Palestina, basta ver o que se passa no Iémen. É fácil acusar os americanos e os sauditas, mas é a Europa que vende as armas. A França vende as armas, por exemplo.

O meu filme não é exclusivamente direcionado à Palestina. No geral, é sobre as consequências do Mundo e podemos lidar com isso sem olhar unicamente para nós próprios. É uma viagem espiritual que suscita a questão do que “poderá ser feito?”. Mas, acima de tudo, It Must Be Heaven” é um filme do momento, do prazer do momento. Eu faço filmes para que o espectador possa ter prazer ao assisti-los. Possivelmente, por trás deste prazer, divertimento, risadas, surje um senso de busca, meditação ou debate. Só que estas características não são a minha bandeira enquanto cineasta.

Para mim o Cinema não serve para resolver problemas, mas sim agarra-se aos nossos momentos mais ternos para que não desistamos da nossa Humanidade perante um governo, ou uma multinacional. Agarrar-nos ao que resta da nossa presença humana.

Não gosto de dizer isto, mas ao olhar para a história adquirimos a certeza que a mesma é construída por muros. Nada de otimista vem dela, portanto, o que posso garantir é que o espectador obtenha algum prazer a ver os meus filmes.

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