Segunda-feira, 20 Maio

“Pensar em Tempos”: Entrevista com Paz Encina

Frame do filme Familiar (2014)

Paz Encina é hoje um dos principais nomes do cinema sul-americano. Nasceu em Assunção e se formou em Cinema em 2004 na Universidade do Cinema de Buenos Aires. Inicia a sua carreira cinematográfica em 1996, desde esta época tem realizado diversas videoinstalações e curtas-metragens, muitas delas premiadas. Em 2006 fez a sua primeira longa-metragem, “Hamaca Paraguaia“, vencedora de vários prémios importantes, um deles  o Fipresci do Festival de Cannes. Em 2016, realiza “Ejercícios de Memória“, segunda longa-metragem e “Eami“*, a sua terceira longa, está em fase de finalização. E entre 2002 e 2004, Encina trabalhou como professora em universidades.

Lídia Ars Mello: Por que escolheu o cinema para trabalhar e não a música ou outra arte?

Paz Encina: Foi um pouco aleatório. Eu fui criada na música. Eu fui solista de violão por um longo tempo e, de facto, a música foi a minha primeira alfabetização. Comecei a ler e escrever músicas antes de escrever letras. E então, depois de terminar os estudos, estudei direito, porque sou de uma família de advogados. E como não sou de um país onde o cinema era possível, pois não havia universidades e nem sequer havia um passado cinematográfico no país, então sequer eu considerava essa possibilidade. Até que deixei o direito e fui para o jornalismo, fui trabalhar numa produtora de TV, e aí comecei a pensar na possibilidade de estudar cinema. Não venho de um país onde se poderia pensar em viver de arte, por isso também não me dediquei ao violão. Politicamente, sou filha do pós-guerra, do Chaco (um recente pós-guerra, onde o meu avô lutou – para você ter uma ideia de como é recente), e eu nasci na ditadura e vivi a infância e a adolescência inteiras nesse horror, até os 18 anos, quando derrubam Stroessner.

Faz muita pesquisa para realizar os seus filmes, mesmo os ficcionais?

Muita. E é algo que não consigo parar de fazer. Gosto e investigo muito, busco, olho atentamente, estudo…

Você trabalha com o roteiro?

Trabalho com o roteiro, de facto, trabalho bastante, embora na hora de filmar liberto-me muito dele e também de pensar na montagem. O que não significa que tudo seja agradável, às vezes também fico com medo. Mas tento filmar o mais livremente possível. Até agora, nunca filmei com storyboard, porque acho que isso tiraria a minha liberdade. Eu tento me encontrar o tempo todo e isso exige liberdade.

Quando você faz um filme, em qual etapa dedica mais tempo?

Acho que cada filme é diferente. Em “Hamaca Paraguaia” (2006) foi na pré-produção e todo o resto correu rápido. Em Ejercícios de Memória (2016) levei muito tempo pesquisando e conduzindo as entrevistas. E na minha recente longa-metragem (Eami) a ênfase está sendo na edição, na qual estamos dedicando muito tempo juntamente com a montadora Jordana Berg.

Quando realizas um filme, qual é a coisa mais importante para você?

O mais importante é ser fiel à minha própria maneira de ver o mundo. Às vezes, acho que somos muito alfabetizados na maneira de olhar e falar com o mundo. Sempre penso no modo como quero dizer as coisas, em encontrar a minha própria maneira de dialogar com o mundo. Estou interessada em contar o que acontece com as pessoas. Acho que todos nós, mais ou menos, sentimos as mesmas coisas. O que me interessa é poder conhecer pessoas e ser capaz de distinguir os encontros e manter uma fidelidade comigo mesma, com o lugar de onde venho, com o meu ser.

A tua estética cinematográfica é política, poética e pictórica. As imagens são quase coreográficas. Você poderia falar sobre a importância da música quando filma as longas e esplêndidas sequências dos seus filmes.

É um pouco do que disse numa pergunta anterior. A minha primeira alfabetização foi a música e isso permanece como uma estrutura de pensamento. Foi como se eu aprendesse a olhar, ouvir, pensar. E quando escrevo os roteiros inicio pelo som, quase sem me dar conta. Às vezes escrevo como se estivesse escrevendo uma partitura.

Frame do filme “Ejercícios de Memória” (2016)

Quais são as referências estéticas do seu cinema?

Ozu, Bresson, Kiarostami, Chris Marker, Farocki. Ozu é a minha principal referência. Poderia citar muitos outros diretores que admiro. Porém, nos filmes desses realizadores poderia dizer que vejo o meu povo. Visto que as obras deles têm o potencial de tornar universal situações que distam da nossa realidade. Certamente, a universalidade é o que mais admiro nesses cineastas.

Você trabalha com atores e não atores ao mesmo tempo. Poderia falar sobre a direção de atores?

Isso é algo que faço ao conviver com as pessoas. Pelo facto de podermos nos encontrar enquanto indivíduos e compartilhar algo. Não sei o porquê, mas isso nunca foi difícil para mim. Talvez neste último filme, sim, porque tinha a questão da língua, trabalhei com uma comunidade indígena, o povo Ayoreo, e havia um tradutor, e isso tornou tudo um pouco mais difícil as coisas. Mas confio nas pessoas.

Sobre “Hamaca Paraguaia” (2006), a sua primeira longa-metragem: um casal de camponeses esperam o filho que foi lutar na guerra do Chaco. E também esperam por melhores tempos. Qual a importância do tempo em teu cinema?

É algo que, creio, está novamente e diretamente relacionado com a minha formação musical. Música é tempo. Quando você começa a escrever uma partitura, pensa em compasso, a que horas ocorrerá. E também a música é pensada em tempos sobrepostos, uma colcheia compartilha uma partitura com um branco ou uma rodada, e isso não é um problema. Acho que para mim, pensar em tempos é algo praticamente estrutural.

Frame do filme “Hamaca Paraguaia” (2006)

Quais marcas da guerra do Chaco ainda persistem hoje na vida desta região semi-árida do Paraguai?

No Paraguai houve três eventos seguidos. A guerra da Tríplice Aliança (contra Brasil, Argentina e Uruguai) de 1870 a 1875, depois a guerra do Chaco de 1932 a 1935 e a ditadura militar de 1954 a 1989. As consequências desses eventos considero que são muito próximas, eles deixaram o País numa situação económica ruim, pobre em população masculina, o que implica um patriarcado muito forte ligado à corrupção e ao favorecimento seletivo.

Sobre a trilogia de curtas-metragens: “Famíliar” (2014), “Arribo” (2014) e “Tristezas de la lucha” (2016). Nesses filmes, você continua com o tema da ditadura militar no Paraguai, como na sua segunda longa-metragem, “Ejercícios de memória” (2016). Foram as curtas que te inspiraram a fazer a longa?

Não, as curtas foram uma espécie de urgência, porque faziam parte do meu processo de pesquisa. Quando encontrei os sons, no lugar que chamamos de ARQUIVO DO TERROR, senti que tinha em mãos a coisa mais brechtiana que já havia escutado. E como fazer uma longa-metragem leva muito tempo, estas curtas-metragens documentais eram uma urgência para começar a por luz em tudo o que estava vendo e ouvindo. 

Nos seus filmes (num menos, noutro mais), você mistura ficção e documentário. Qual é a relação entre esses campos no seu cinema e entre a ditadura militar e a sua vida familiar?

Olha, é interessante que você me faça essas duas perguntas ao mesmo tempo. Porque, para mim, não há dissociação entre uma coisa e  outra, em qualquer uma das duas perguntas. Acho que a ficção e o documentário são maneiras de ver o mundo, e se uma dessas narrativas ajuda a contar algo melhor, e se é por isso que preciso usar as duas coisas, não é um problema para mim. E sei que não é comum. E nem por isso são mais ou menos válidos. E a ditadura e  a minha vida familiar estão unidas. Nasci em 1971, no âmbito da ditadura militar que começou em 1954 e durou até 1989. Fazia parte do meu dia a dia, assim que nasci já respirei isso.

A ditadura militar foi um mal terrível para a América Latina e a do Paraguai foi a mais longa. Para fazer “Ejercícios de Memória” e as 3 curtas-metragens, teve alguma dificuldade em usar as imagens e os arquivos de áudio do Arquivo do Terror?

Não, de maneira alguma, pelo contrário, eles foram dados com grande generosidade, mas acho que foi por eu ter encontrado pessoas que salvaguardam a memória de uma maneira muito cuidadosa. Às vezes sinto que Stroessner partiu no Paraguai, mas não o stronissmo.

“Em Ejercicios de Memória” você utilizou imagens de arquivo e imagens filmadas. Como você trabalha a montagem, como se dá o processo da montagem dos seus filmes?

Para a montagem, esqueço o roteiro. “Hamaca” foi filmado com mais rigor do que “Ejercicios” e “Eami” (o meu último filme). Tanto num como no outro, surgiram coisas na montagem que nunca foram escritas no roteiro. Na verdade, acho que ao editar construo com o montador um novo roteiro. Algo que não havia sido pensado.

Onde foram filmadas as suas longas-metragens?

Hamaca” em Villarrica, no departamento de Guairá-Paraguai. “Eami” no Chaco Paraguaio. E “Ejercícios” filmei em Corrientes-Argentina, quando gostaria de tê-lo filmado no Paraguai, mas na época era mais barato, e você sabe quanto dinheiro custa uma produção.

Desde o início da pandemia do coronavírus, você está no Brasil, no Rio de Janeiro, editando a sua nova e terceira longa-metragem, “Eami“. Do que se trata o filme?

Na verdade, estou aqui desde antes da pandemia. Vim um mês antes para iniciar a montagem do filme, e a pandemia apanhou-me aqui, sendo o retorno ao Paraguai difícil para mim. “Eami“, aborda a situação dos povos indígenas que são forçados a deixar o campo. É uma história de perda, de perda de crianças devido a uma invasão.

Como está sendo esta experiência do confinamento?

O confinamento é difícil. Acho que todos no mundo estão vivendo isso (literalmente) com muita dificuldade. É muito difícil o que todos estamos experimentando, mas também está ajudando a reconfigurar as nossas vidas, e isso pode nos fazer bem.

E por que você escolheu a montadora Jordana Berg (que editou os filmes do memorável documentarista brasileiro Eduardo Coutinho) para fazer a edição do seu filme “Eami“?

Coutinho é uma das melhores coisas que aconteceram no cinema latino-americano e ao próprio cinema documentário. E trabalhar com Jordana era um sonho para mim e é a melhor coisa que me está a acontecer. Falar do trabalho de Coutinho é falar de Jordana (mas acho que Jordana também fez muitas outras coisas), e sabia que trabalhar com ela seria mais do que apenas trabalhar numa montagem de filme, estar com ela, é uma experiência. É muito mais que uma montagem.

* Eami na língua dos índios Ayoreo, significa ao mesmo tempo montanha e mundo.

Entrevista feita por e-mail, dia 23 de Junho de 2020 (no âmbito do Ciclo de Filmes Paz Encina, programado por Lídia Ars Mello, filmes exibidos este mês no Cineclube CBL– da Casa do Brasil de Lisboa).

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