Segunda-feira, 20 Maio

Alice Winocour e as “Memórias de Paris” que nunca mais se apagam

"Memórias de Paris" chega aos cinemas a 15 de dezembro

Há memórias que nunca mais se apagam e o mais recente filme de Alice Winocour toca num dos temas mais sensíveis para os franceses nos últimos anos: os atentados de 13 de novembro de 2015 em Paris, que fizeram mais de 130 mortos e deixaram mais de 400 feridos. E quando falamos em feridos, contamos apenas os físicos, pois psicologicamente o ato traumatizou uma nação, como nos explicou em Cannes a realizadora de filmes como Augustine, “Maryland” e “Proxima” (O Espaço entre Nós).

Em “Revoir Paris” (Memórias de Paris), Winocour  acompanha os eventos a partir da história de Mia (Virginie Efira), uma mulher que sobreviveu ao ataque, mas que não tem qualquer memória do que aconteceu no restaurante onde estava nessa noite. Será com a ajuda de Thomas (Benoît Magimel) e de muitos outros que se encontravam no mesmo local, naquela fatídica noite, que Mia vai reconstruir os seus passos e entender melhor o que aconteceu.

A questão da culpabilidade – seja o de deixar a sua filha para responder a uma ambição de carreira (Proxima), seja através da acusação de alguém que se encerrou num espaço, impedindo outros de se salvarem durante os atentados (Memórias de Paris) – é algo frequente na sua obra. Em “Maryland” isso também era omnipresente… O que a atrai a esta questão?

Não é tanto a culpabilidade que me interessa, mas o trauma que fica marcado nas pessoas. Neste caso, é uma pessoa sem memória que é confrontada com um sentimento insuportável de que poderia ter tido outro tipo de comportamento. Acima de tudo o que me interessa é que estamos com alguém que não se lembra do que aconteceu e que procura outra pessoa para se recordar de uma noite. A junção de recordações de uns e outros é algo que acho extremamente interessante.

Virginie Efira, Alice Winocour e Benoît Magimel em Cannes

E porque escolheu o tema dos atentados de Paris para o seu novo filme?

Foi algo que se impôs em mim. À partida tinha o meu irmão que esteve presente nos atentados do Bataclan, mas sobreviveu. Falei muito com ele e de como tinha sido essa noite, mas entretanto filmei o “Proxima”. Foi verdadeiramente algo que se impôs, embora o que tenhamos em cena seja um trabalho de ficção.

E falou com pessoas que sobreviveram a esses atentados? Como foi esse processo de recolha de testemunhos?

Sim, Quando faço um filme tenho uma abordagem sempre entre a ficção e o documentário, não foi o caso exclusivo deste filme. Interessou-me muito descobrir este mundo, não apenas dos sobreviventes. Por exemplo, falei igualmente com psiquiatras e todos eles me explicaram o complexo processo das memórias traumáticas.

A investigação e pesquisa exaustiva são coisas que a acompanham permanentemente no seu trabalho. Seja no domínio das viagens espaciais (Proxima), seja neste caso, do atentado…

É algo natural em mim, mas não porque acho isso interessante como método. No “Proxima” estive no Cazaquistão, na Rússia e na Alemanha em bases espaciais. Descobri um mundo novo. Claro que nesse filme, a parte do relacionamento com a minha filha conhecia bem. Mas, por exemplo, quando trabalhei no “Maryland”, para o fazer encontrei-me com muitos soldados que tinham stress pós-traumático, que era um tema sobre o qual pessoalmente não sabia muito.      

Existe sempre um tom pessoal nos seus filmes. Em “Proxima” tínhamos uma análise da sua relação com a sua filha. Aqui temos um princípio de um evento, os atentados, em que o seu irmão esteve presente… 

Acho que não consigo fazer um filme com o qual não esteja de alguma forma ligada. Todos os filmes passam-se em mundos diferentes, em vários países, mas existe sempre alguma distância entre o meu mundo e esses universos. Quanto mais próximo for a história de mim, mais difícil é de a concretizar. Mas a intimidade para mim é fundamental. Não consigo falar de algo a que não tenha qualquer ligação.

Quando escreveu o guião, já tinha  os atores em mente, ou seja, a Virginie Efira e o Benoît Magimel?

Sim, escrevi a pensar neles. São personagens que partilham uma ferida comum e que decidem se reunir. O Benoît é alguém que cresceu muito desde os tempos de jovem e permitia criar uma identificação muito forte com a sua personagem. No fundo, ambos são atores que têm as suas fragilidades, mas que não as expõem facilmente. Isso me interessava muito.

Memórias de Paris

E como foi filmar a cena do ataque propriamente dito. Presumo que tenha sido emocionalmente complexo?

Sim, deveras. Filmámos num estúdio, pois era impossível filmar nos locais em Paris onde os atentados ocorreram. Queria filmar essa cena como um filme de guerra. Tivemos mesmo de destruir o restaurante e isso não era possível numa locação real.

Mesmo que tudo seja visto pelo ponto de vista da MIa, foi muito complicado ensaiar e executar a cena. Os atentados em si não eram o tema do filme, mas essa cena era fundamental para a psique das personagens e para o ato de reconstrução das memórias. Essa reconstrução em grupo era algo fundamental.

Vi o filme no cinema Licorne, em Cannes-La Bocca. A meio da sessão, alguém saiu da sala e, quando a porta se fechou, ouviu-se um pequeno estrondo. Nesse momento, e logo depois de vermos a cena do atentado no ecrã, as pessoas que estavam na sala viraram-se todas para trás em sobressalto. Crê que França vive com um trauma desde os atentados?

Sim. O que é estranho é que fiz este filme sobre o trauma de alguém, o qual reflete o trauma da minha família. Porém, à medida que fui filmando, percebi que é um trauma nacional. Eu estou apenas no meio de um trauma coletivo, por isso era muito importante para mim contar muitas histórias dessa noite. 

As memórias da Mia não são apenas dela, são também dos trabalhadores senegaleses que estavam também no restaurante e de muitos mais. Um dos objetivos era mostrar as várias camadas da sociedade francesa, de pessoas que vinham de diferentes origens. Os atentados envolveram as pessoas em algo muito maior que elas, obrigando-as a confrontar a morte. E, naquele momento, todas eram iguais. É o tipo de evento que certamente nunca na vida vais esquecer.

O seu filme está cheio de pequenos detalhes que enriquecem o quadro geral. No “Proxima”, isso também acontecia. É alguém muito meticuloso na execução dos seus projetos?

Detalhes são memórias e memórias são cinema. Por isso, contar histórias é mostrar detalhes e apresentar a humanidade, como ela é.

Depois do “Proxima” e “Memórias de Paris”, está já a preparar um novo projeto?

Sim, estou a escrever um filme de horror, mas é cedo para falar dele.

E vai realizá-lo?

Sim, vou.

Costuma escrever guiões para outros realizadores, como se viu no “Mustang”. Vai continuar também a trabalhar nesse sentido?

Sim. O que me interessa é que quando escrevo algo tenho de ter uma ligação pessoal ao material, mesmo que seja passado na Turquia ou na Sérvia. Por isso, vou continuar a fazê-lo [mesmo que não os realize.]

Notícias