Quinta-feira, 25 Abril

Claudia Pinto Emperador: “O poder do cinema como um espelho é inigualável”

Entrevista feita no âmbito do Olhares do Mediterrâneo - Women's Film Festival

Claudia Pinto Emperador (1977-) é argumentista e cineasta multipremiada, nascida em Caracas, Venezuela, residente em Espanha, licenciada em Comunicação Audiovisual, com Mestrado em Argumento Cinematográfico e Especialista em Fotografia e Novos Meios Audiovisuais. “La distancia más larga” (2013) é a sua primeira longa-metragem (Venezuela/Espanha), foi nomeada para o Goya de Melhor Filme Ibero-americano e ganhou 17 prémios internacionais (Prémio Platina de Melhor Primeiro Filme; Melhor Filme Latino-americano no Festival Des Films Du Monde em Montreal; Melhor Realizadora no Festival Internacional de Cinema de Cleveland; e foi selecionada na Seleção Oficial em Gijón, Havana; entre outros).

Em 2021, lançou a sua segunda longa-metragem, “Las consecuencias”, coprodução entre Espanha, Países Baixos e Bélgica, a qual participou no Fórum de Coprodução de San Sebastian e ganhou o Prémio Eurimages. Produzida por Els Vandevorts (“Dancing in the dark and Dogville” de Lars Von Trier) e nomeada para o Óscar em 2021. Desde 2006, tem combinado o seu trabalho no cinema com a realização de séries televisivas.

Como o cinema entra na tua vida?

Quando era criança, quando tinha 4-5 anos de idade, adorava desenhar e dizia a todos que ia ser pintora, era muito claro para mim! Tinha boa memória visual e podia desenhar qualquer coisa que me viesse à cabeça: parecia-me mágico capturar de alguma forma a vida das coisas. Penso que este anseio que tive quando criança é a origem da minha paixão pelo cinema. O meu pai (que era brasileiro e filho de um lisboeta) também era apaixonado por imagens, por fotografia. E quando olho para trás, apercebo-me que herdei dele um temperamento melancólico, uma espécie de nostalgia que me faz ansiar pelo que ainda está à minha frente e sinto um desejo louco de o capturar antes que desapareça. Gradualmente, o desenho deu lugar ao cinema. E ao realizar filmes descobri o poder do processo criativo partilhado, e hoje sinto-me com sorte, com muito mais sorte do que se eu fosse pintora, o que eu sonhava quando criança.

A tua recente e segunda longa-metragem “Las consecuencias”, 2021, assim como a primeira, “La distancia más larga”, 2013, giram em torno de problemas e relações familiares, humanas. Qual é a importância deste tema na sua vida e na sociedade de hoje?

A família é o núcleo, a origem, a raiz de quem nós somos. Acredito num cinema essencial, que narra assuntos íntimos de que temos dificuldade em falar. O poder do cinema como um espelho é inigualável. Acho muito sedutor que o cinema reflita, retrate e sirva para nos fazer perguntas sobre questões que nos definem como indivíduos e como sociedade. Escrevo e faço filmes sobre o que me causa temor e sobre o que não sei resolver. E, mais cedo ou mais tarde, sempre invento histórias familiares a partir do que me tocas por dentro.

Poderias falar do filme “Las consecuencias”, que será exibido em Portugal no dia 19 de novembro, no Olhares do Mediterrâneo?

Las consecuenciasnarra a história de um segredo que atormenta três mulheres de três diferentes gerações da mesma família. Questiona os limites da intimidade, fala daqueles olhares que abusam e nos roubam a nossa paz de espírito. É um filme que tem servido para abrir muitos debates sobre os limites dos abusos, sobre a normalização dos abusos, sobre o silêncio. Como realizadora, enche-me de satisfação ver o poder que um filme pode ter para provocar as consciências, e como mulher sinto orgulho em falar de assuntos que raramente são falados e que nos magoam tanto. Mal posso esperar para ver como o filme será recebido pelo público em Portugal.

Quais são os desafios de ser uma realizadora mulher-mãe, e uma realizadora da Venezuela-América Latina?

O maior desafio enquanto cineasta latino-americana foi acreditar que isso fosse possível. Na Venezuela, quando decidi fazer filmes, havia apenas 10-12 filmes por ano, 90% feitos por homens, claro. Como poderia eu pensar em fazer filmes naquele país, sendo mulher e tão jovem? Há vinte anos atrás tínhamos poucas referências, mas por vezes a necessidade faz uma virtude, e acho que saber que era tão difícil me deu a coragem de tentar.

E ser mãe e fazer filmes tem sido outro ajustamento difícil. Tenho dois filhos pequenos, de 5 e 8 anos, e vi-os crescer enquanto fazia os meus dois filmes. É evidente que não é fácil e sem o apoio do meu parceiro seria impossível. Embora cria-los seja algo cansativo, têm-me dado muita energia a nível emocional. Os meus filhos ajudam-me a relativizar, e a estar em contacto permanente com o que é realmente importante.

Ao longo da história do cinema, as mulheres têm sido invisíveis em posições de destaque, por exemplo como realizadoras e argumentistas. Mas nos últimos anos esta situação tem vindo a melhorar. Na sua opinião, o que tem contribuído para esta mudança?

Consciência e, sem dúvida, trabalho de equipa. Cada mulher que trabalha no cinema e prova o seu valor faz a sua parte, mas o trabalho das associações de mulheres, das diferentes instituições que promovem a igualdade, de festivais de cinema como Olhares do Mediterrâneo, tem dado muita visibilidade a esta luta e os resultados começam a aparecer. Já não é tão raro ver mulheres realizadoras, argumentistas, diretoras de fotografia, montadoras, musicistas, em equipas de produção. A paridade é um longo caminho, mas já está no horizonte.

Quão importante é para as mulheres contar histórias e fazer filmes de um ponto de vista feminino?

É essencial ter voz. Isto aplica-se a todas as minorias, mas o que é óbvio no caso das mulheres é que nós não somos minorias, pois representamos metade da sociedade. É difícil compreender como ainda há pessoas que precisam de explicações e argumentos. Não há nada a debater: o nosso olhar tem de estar lá. O cinema é um espelho e ao mesmo tempo um reflexo, por isso tem de abraçar todos os pontos de vista.

Qual é o papel das mulheres enquanto cineastas?

Ser honesta e descontraída. Não acredito num cinema supostamente feminino. Não temos de forçar ou impor o nosso olhar, ou sair como uma guerreira ou estar à espreita. Temos de nos fazer perguntas, cultivar a nossa voz, aguçar o nosso olhar e, acima de tudo, deixar fluir a nossa intuição. O melhor papel que uma cineasta mulher pode desempenhar hoje em dia é fazer bons filmes, mostrar seu talento e trabalho árduo, ser honesta com as preocupações que trazem à tela. Mas não creio que seja o nosso papel estar em pé de guerra. O poder do cinema é avassalador, vamos aproveitar esse poder, tentando ser honestas e genuínas no nosso olhar.

Felizmente, festivais como Olhares do Mediterrâneo – Women’s Film Festival, tornaram possível mais filmes feitos por mulheres serem vistos. Do seu ponto de vista, o que poderia ser feito para que mulheres e homens (realizadores, argumentistas e não só) tenham as mesmas oportunidades de fazer e mostrar o seu trabalho?

Para já, é essencial apoiar projetos realizados por mulheres, abrir espaços para que seus trabalhos cheguem ao público, dar voz, espaços na imprensa, tudo… Quando já não for necessário defender a paridade, a discriminação positiva deixará de ser necessária. Não sei quanto tempo vai demorar até que isto aconteça, espero que seja em breve, porque é cansativo ter de reclamar o óbvio a todo momento. Sou otimista e parece-me que os critérios de igualdade estão (finalmente) a fazer parte da memória coletiva. A minha filha de 8 anos não acredita que não possa fazer o que quer com a sua vida, tem milhares de referências positivas à sua volta e que lhe mostra que o mundo também é dela. Ver como ela pensa, como cresce, enche-me de esperança para o futuro.

Quais as realizadoras que inspiram o teu cinema?

Amo Jane Campion, admiro-a muito e ela tem sido uma referência muito importante para mim. Lembro-me que estava a entrar na universidade quando ela ganhou em Cannes com o filme “O Piano”. Nessa altura, não tinha consciência da importância deste evento para o mundo do cinema e para mim em particular, mas ao longo dos anos percebi que “sim, podemos”, que o que estava escondido por detrás desse triunfo permaneceu marcado em mim. Também gosto muito dos filmes de Naomi Kawase, e mais próximos da minha geração, os de Chloé Zhao, o seu extraordinário filme “Nomadland”, “The Rider”, etc.

E por fim, estás a desenvolver algum projeto?

Estou a terminar um filme não ficcional chamado “AQUÍ, AHORA”, no qual acompanho uma atriz muito conhecida em Espanha (com quem tenho uma amizade profunda há mais de 10 anos) nos primeiros momentos depois que ela descobre estar com Alzheimer. É um belo filme sobre identidade, sobre a arte como farol em momentos escuros, e sobre amizade. Mais uma vez, o cinema como espelho.

Notícias