Sábado, 20 Abril

Alexander Sokurov: “Os grandes ditadores nunca nos deixaram. Andam por aí na forma de ideologias”

O cineasta russo Alexander Sokurov, responsável pela tetralogia em torno dos efeitos corruptores do poder – “Moloch” (1999), “Taurus” (2000), “The Sun” (2004) e “Faust” (2009) –, tem um novo filme, “Fairytale – Sombras do Velho Mundo” (Сказка), onde reúne num purgatório monocromático fantasmagórico nomes como os de Hitler, Estaline, Mussolini e Churchill, além de presenças especiais de Napoleão e Jesus Cristo.

Sim, isso mesmo. Leram bem.  O novo filme deste “cientista do cinema”, como o seu aprendiz Viktor Kossakovsky o descreveu ao C7nema, revela-se extremamente provocante, olhando para figuras marcantes do século XX que ainda “estão entre nós”, como nos confessou Sokurov em Locarno. “Juntei-os todos porque são contemporâneos, partilharam as mesmas guerras, tudo neles é comum. É uma história do velho mundo” que ressoa atualmente, explicou. “Estes ditadores nunca nos deixaram, andam por aqui na forma de ideologias. Os nazis ainda existem, o colonialismo também. O ódio de uma raça perante outra igualmente. Veja, por exemplo, os franceses e ingleses não simpatizam uns com os outros. Na verdade, é tão fácil as pessoas não gostarem umas das outras (risos).”

Para trazer à vida todas estas figuras, encarceradas num local onde não falta ainda a presença de muitos dos seus seguidores, Sokurov usou e abusou da computação gráfica, recusando, porém, recorrer à tecnologia Deep Fake. “É o meu trabalho. Difícil, mas trabalho”, disse Sokurov, isto enquanto ansiosamente aguardava, que nem uma criança, um gelado de limão que tinha pedido e que irá devorar com os olhos a brilhar. “Nada no filme é Deep Fake. A nossa tecnologia não é essa. Durante dois anos juntamos material. Usámos todos os arquivos de Estaline. O que vemos são emoções reais, caras reais, gestos reais. Eram as suas palavras e tentamos ser o mais objetivos. Não é romantismo, publicidade ou documentário. Apenas os ressuscitei, permitindo dar ao espectador alguns pensamentos íntimos de pessoas que para muita gente são heróis. Pensamentos e palavras descobertas nos nossos arquivos.” 

Não estranhem por isso ver Churchill preocupado por ter perdido Clementine, enquanto Hitler está irritado por não ter destruído Londres e Paris, enquanto – frequentemente – chama nomes a Estaline e vice-versa. E sim, há muitos urinóis neste purgatório e é lá que muitas conversas e agressões verbais ocorrem. “Eles chamavam-se nomes uns aos outros como vemos no filme. E ainda pior. Por exemplo, o Churchill odiava o Estaline. Ele dizia que era um demônio. Não vou dizer o que o Estaline disse dele, mas não foi muito diferente. Porém, a qualquer momento, eles também apertam a mão um do outro chegam a uma decisão final contra um inimigo comum. Existe neles uma consciência do comum”.

Alexander Sokurov, Director, Skazka, of the 75 Locarno Film Festival, Locarno, Saturday, 06 August 2022..© Locarno Film Festival / Ti-Press / Alessandro Crinari.

Depois de falhada a estreia  do filme em Cannes, talvez por ser russo, Sokurov aterrou em Locarno, um certame muito respeitado pelo cineasta que em início de carreira viu um filme seu ser banido na União Soviética e encontrado na cidade suíça o seu local para exibição.

Sobre os festivais de cinema de categoria A, Sokurov tem um lamento em relação às suas escolhas mais recentes. É que para além de o mercado se sobrepor muitas vezes à arte, o russo odeia ver algumas coisas em certos filmes que vão contra tudo o que acredita que um cineasta deve mostrar. “Um maiores problemas  que tenho com os festivais classe A, por exemplo, é a presença de filmes que mostram violações. Nunca mostrem uma violação, não interessa quão talentoso seja um realizador. Não coloquem em cena nada sobre violação que pareça minimamente atraente. A maioria das pessoas não sabe o que é uma guerra, mas vê-las muitas vezes no cinema através de imagens de heroísmo e nobreza. Mas se numa guerra há tanta bondade, porque há realmente guerra? O cinema mostra a maioria das vezes a guerra de forma glamorosa. Isso é errado”.

Fairytale – Sombras do Velho Mundo” (Сказка) estreia a 5 janeiro.

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