Sexta-feira, 19 Abril

Onoda: o japonês que passou 10 mil dias numa ilha e não acreditava que a 2ª Guerra Mundial tinha acabado

Nos cinemas a 3 de março

Filme de abertura da Un Certain Regard no Festival de Cannes, vencedor do Grande Prémio do Júri em Sevilha e Melhor Filme nos Prémios Louis Delluc, “Onoda, 10 000 Noites na Selva” é dos filmes sensação de 2021.

Partindo de um fait divers, o gaulês Arthur Harari (Diamant noir, 2016) leva-nos à verdadeira história de Hiro Onoda, um soldado japonês que permaneceu numa ilha das Filipinas – Lubang – durante 29 anos, recusando-se a acreditar que a Segunda Guerra Mundial tinha acabado.

Esta é uma história tão louca, fascinante  e absurda que interessaria a qualquer um“, explicou-nos o cineasta no Festival de Cannes, quando nos sentámos à mesa com ele. Nessa conversa, descobrimos como Harari chegou a esta história, filmada em japonês. Uma conversa para seguir abaixo: 

Quando teve conhecimento pela primeira vez desta história mirabolante?

Foi o meu pai que me contou. Há três anos estava obcecado em encontrar uma boa história. Queria fazer um filme de aventuras. Estava a ler ficções e não-ficções sobre vários temas e o meu pai tinha uns livros sobre exploradores e marinheiros solitários. Não encontrei nada nesses livros, mas uma noite ele contou-me a história de um japonês retido numa ilha, muitos anos depois da guerra ter acabado, mas que acreditava que ainda estava em combate. Nunca tinha ouvido falar disto e, quando ele me contou, parecia até ser uma piada. Inicialmente era difícil imaginar-me a fazer um filme sobre isto, até porque não tinha filmado ainda nenhuma longa-metragem. Era um pouco louco imaginar-me a conseguir fazer este filme, mas parti para a investigação, vi uma foto do jovem Onoda, li um livro francês sobre ele e fui arrastado para este projeto. Tive de tornar-me numa outra pessoa, de substituir o meu mundo (França) por outro (Japão).

Arthur Harari fala em Cannes de “Onoda, 10 000 Noites na Selva

A ambiguidade é um dos pontos essenciais do seu filme, no que diz respeito à personagem e o que devemos sentir em relação a ela. Qual é a sua percepção sobre este homem?

Uma coisa é a minha percepção sobre a figura real e outra é a que tenho da personagem do meu filme. A personagem não é o homem real. Nunca o conheci ou encontrei e ninguém sabe concretamente como ele viveu estes 30 anos. Todos podemos ter algumas ideias e fazer julgamentos sobre ele, mas ele permanece um mistério como todos nós. Para criar a personagem segui um processo de invenção, tentando de alguma forma entendê-lo ao longo da sua jornada e criar uma empatia entre ele e o espectador. Esta empatia e proximidade nunca poderia ser dada ao princípio. Foi tudo uma construção. 

Por isso mesmo, essas questões de como o vemos, intimamente, politicamente, ideologicamente, são isso mesmo, ambiguidades. Lancei questões e o meu objetivo era que aos poucos as respostas a essas questões fossem secundárias em comparação à fé que ele tinha e as emoções que vive. Um filme é sempre um encontro estranho entre pensamentos e emoções. E esses pensamentos influenciam as emoções, que por sua vez geram pensamentos. Às vezes andas perdido entre eles, mas isso não é um problema. Espero sinceramente que no fim desta jornada estejam num ponto completamente diferente daquele onde começaram.

Uma das suas opções durante a execução do filme foi mostrar a selva com cores dessaturadas, o que não acontece frequentemente no cinema quando entramos normalmente por elas dentro. Por que tomou essa decisão?

Tomei essa decisão com o meu irmão, que é o diretor de fotografia. Na verdade, os outros filmes é que normalmente saturam muito as cores da floresta/selva. Queria algo reconhecível, mas não carregado. Também não queria algo neutro. O filme é sobre acreditar e, quando acreditas, isso torna-se real. Às vezes tens de convencer-te a ti mesmo que ainda acreditas, mas a maior parte do tempo, a fé dá-te a certeza que vives no mundo real e que esse é o que acreditas. Isto passa igualmente para a dimensão estética do filme e na experiência de vida. O filme nunca foi sobre loucura, mas de homem que analisa as coisas, faz sempre o mesmo erro, mas tem a consciência clara do que vive. É um pouco um paradoxo, mas esta era a história que queria contar. 

Sendo francês, creio que certamente foi difícil trabalhar num guião onde o japonês domina. Como trabalhou isso? Tinha tradutores disponíveis em todos os momentos? Como se processou esse trabalho?

Tínhamos um tradutor. Foi e é muito importante em todo o processo e está aqui em Cannes a ajudar-me em todas as entrevistas em japonês que tenho de dar. Ele está no projeto desde o início, logo na escrita. Ele é sem dúvida uma das razões pelas quais o filme triunfou. É meu amigo e sabia bem o que eu queria. E teve muita influência em várias partes do filme. Por exemplo, foi ele que me aconselhou o ator que interpreta o Onoda no fim. E foi também ele que deu a ideia de colocar a voz do imperador no fim com o discurso de capitulação. Fez uma tradução excelente, deu muitas ideias e ajudou-me na troca de palavras com os atores. Era um segundo eu em cena em todos os aspectos da comunicação. Tudo demorava muito mais tempo para que se percebesse o objetivo, mas agora nem vejo isso como um problema ou dificuldade. Claro que ajudou o produtor estar sintonizado com isso e ele sempre demonstrou abertura para isso. Ele percebeu que essa demora, que a duração de 3 horas do filme (que no início não tínhamos noção) era a única forma de o filme funcionar.

Onoda, 10 000 Noites na Selva

Quando o Hirokazu Koreeda fez o “A Verdade”, com um elenco francês e uma história muito francesa, ele disse que por momentos duvidou de conseguir fazer isso, por ser japonês e estar um pouco mais distante dessa realidade. No seu caso, é o inverso. É um francês a assinar uma história muito japonesa. Alguma vez duvidou que poderia não estar apto para fazer este filme, ou sempre olhou para ela com um sentido universal?

Ambas as coisas. Queria contar a história de homens, da humanidade e não sobre o Japão e a sua cultura. Claro que tive de conhecer o que era japonês na história para entender o que não era. Esta é uma história tão louca, fascinante  e absurda que interessaria a qualquer um. Antes de tudo ele é um homem e só depois é japonês.

É um pouco como no “Underground” do Kusturica, em que também existe alguém que continua num bunker a acreditar que a guerra não acabou…

Exatamente, é a mesma coisa. É uma história sobre acreditar, criando algo belo mas violento e chocante. Todas estas questões não são japonesas, são universais.  Também me protegi um pouco no processo, ou seja, não li muito livros japoneses, ou estudei a cultura. A minha forma de entrada na cultura japonesa foi através de amigos que fui conhecendo no processo. Não foi planeado.

Mas certamente está interessado em saber o que os japoneses pensam sobre o seu filme…

Sim e esta manhã tive muitas conversas com jornalistas japoneses e a minha sensação é que eles olham para o filme como outras audiências. Claro que têm um ponto de vista particular, mas pelo que percebi têm sentimentos fortes para com o filme. 

E procurou parentes do Onoda para se preparar para o filme?

Essa hipótese estava na minha mente quando comecei a pensar no filme em 2013, mas ele morreu aos 95 anos em 2014. Pensei em visitá-lo no Japão, mas acabei por não conseguir. A sua viúva ainda está viva e está associada à sua memória através de uma instituição. A nova geração já não conhece bem a sua história, até porque continua a ser um tema difícil para os japoneses encararem: a guerra, a derrota. A certo ponto decidi não entrar diretamente em contacto com ela, embora os produtores tenham-no feito. Não no sentido de pedir permissão para falar do tema, até porque isso implicaria mostrar-lhes o guião e surgirem restrições e coisas que não queriam ver no texto. Esta história é do domínio público. Ele morreu e legalmente estamos bem protegidos no que diz respeito à construção da personagem. Além disso, sempre  achamos  que o nosso ponto de vista não ia chocar ninguém, mesmo que seja com um olhar crítico sobre ele e não simplesmente uma vista de admiração. Ele era um ser humano muito complicado. E um herói. E todos sabemos que os heróis estão autorizados a matar e isso é um problema. Ser um herói para mim não é algo completamente claro e pleno. 

No final, achamos sempre que o filme seria mais forte que o eventual medo da reação dos seus parentes a um jovem cineasta francês que tinha um olhar crítico em relação à personagem. Mas também é importante dizer que nunca fizeram nada para travar ou entrar na produção do filme.

Onoda, 10 000 Noites na Selva

Como trabalhou a relação do Onoda com o número 2 no comando. Os dois cresceram juntos naquela ilha e existe uma cena particularmente bela, em que o Onoda diz-lhe que nunca teria ninguém tão bom como ele no comando, durante o período em que estiveram na ilha. Como desenvolveu essa relação, da escrita às filmagens?

A relação entre eles os dois é das coisas mais belas que li sobre o tema. A sua relação é longeva, quase como um casal, ou dois irmãos, amigos e também chefe e súbdito. Todos estes níveis de relacionamento em simultâneo num filme de guerra, um drama sobre fé e até uma história de amor. Este segundo no comando dá tudo pelo seu mestre, amigo e chefe. De certa maneira, ele apaixona-se por ele de forma platónica. Esta relação entre os dois, entre amargura e ternura, envelhecendo juntos, era um dos aspetos mais fulcrais da história. Queria que o espectador envelhecesse juntamente com as personagens e assim chegar a uma maior profundidade. (…) Foi complexo criar essa passagem do tempo, do envelhecimento juntos. Até na montagem, pois tínhamos de transmitir a sensação dos 30 anos que se passaram desde que chegaram à ilha. (…) Quando percebemos que o tempo era um elemento material, como uma escultura ou parecido, soubemos melhor onde aplicar, por exemplo a música, que cria sempre uma distância aos tempos atuais. Para mim é um elemento de narração algo que está a acontecer, mas que não está no grande ecrã.

Outro dos elementos interessantes no filme e no Onoda é a sua extrema crença que a guerra não acabou, como se mantivesse fechado numa cápsula muito sua. Quando fez o filme não antevia a chegada da pandemia, do Covid-19, da explosão de ‘fake news’, etc. Acha que o seu filme e a personagem ressoam especialmente nos nossos tempos?

Sim, é algo óbvio. Quando comecei a pensar no filme, em 2013/14, não se falava muito de ‘fake news’ e outras coisas. Elas sempre estiveram em cena, tal como o sentimento de paranoia, que sempre se manifestou e é uma das bases da psicologia humana. O não acreditar naquilo que te dizem. Esses elementos eram a base da história e o meu trabalho era encontrar uma visão para explorar os temas e criar emoções. Como organizar os factos e reiventá-los, criando assim uma personagem que servisse de espelho para a audiência. Gosto desta experiência de tocar a audiência com uma personagem tão distante deles. Fazer as audiências perderem-se na sua história e nas emoções. Isso só consegues, a maioria das vezes, com uma obra de arte. 

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