Sexta-feira, 10 Maio

Ferit Karahan e “Quando Neva na Anatólia”: “Vejo o cinema como um murro”

Nos cinemas a 7 de Abr de 2022

O cinema é uma arte colaborativa, mas para o realizador Feri̇t Karahan, ele tem de estar em todo o lado, planeando tudo meticulosamente antes das filmagens. Isso mesmo levou-o a dizer numa entrevista ao C7nema durante o Festival de Antália, na Turquia, que provavelmente, e com exceção do seu produtor, todos o “odeiam”. “Sou muito preciso em todos os elementos de um filme. Quando vou para uma cena sei quantos planos e takes vou precisar. Que lentes, que iluminação preciso. Planeio tudo com antecedência para nas filmagens me focar nas interpretações (…)  o diretor de fotografia odeia-me (risos), pois vejo-o como um tripé. Desenho e penso em  tudo meticulosamente previamente, por isso é natural que ele me odeie (risos). Sou muito agressivo com a câmara. Vejo o cinema como um murro. O cinema deve ser um murro. A montagem deve ser um murro e devemos cortar como se fosse com uma faca, não de forma suave. Esta é a minha abordagem ao cinema. O editor de som também me odeia (risos), quem faz a correção de cor também. Todos me odeiam (risos). Bem, o meu produtor não me odeia (risos) pois fica feliz com o resultado. Participo em tudo num filme. Até no título, na legendagem, tudo. Até os agentes de vendas internacionais devem me odiar (risos)”.

Güli̇stan Acet, Feri̇t Karahan e a filha de ambos sobem ao palco para receber o Prémio de Melhor Argumento no Festival de Antália

Premiado na Berlinale e consagrado em Antália com três distinções, Feri̇t Karahan leva-nos neste seu “Brother’s Keeper” até um internato numa região gélida da Turquia. E se todos nos lembramos do calvário do Sr. Lazarescu nas urgências romenas no filme esmagador de Cristi Puiu, “A Morte do Sr. Lazarescu” (2007),agora vamos conhecer neste “Brothers Keeper” o drama de Yusef (Samet Yildiz) e Memo (Nurullah Alaca), dois rapazes curdos que terão de passar por um rol de burocracias, castigos, desconfianças e problemas relacionados com o isolamento físico e social quando um deles adoece e o outro tenta convencer todos da seriedade do caso. Totalmente alegórico na exposição da condição dos curdos na Turquia, o filme nasceu no final dos anos 90 quando o próprio realizador estava numa dessas escolas.

Aí experienciou uma enorme violência entre e contra as crianças, levando-o mais tarde a tentar traduzir essa vivência para o cinema: “Em 2009, quando me tornei realizador,  quis escrever algo sobre isso mas não consegui porque não tinha suficiente distância sobre o tema e sentia muito ódio para com a direção da escola. Em 2012 voltei a pegar no tema  juntamente com a minha co-argumentista, que se tornaria mais tarde a minha esposa. O primeiro rascunho surgiu em 2014, mas em 2015 a Isis chegou ao Médio Oriente e abalou especialmente os curdos, havendo um reflexo da política turca que regressou ao passado, fazendo com que as coisas voltassem ao mesmo sentimento que existia nos anos 90. Uma noite, eu e a minha esposa, começamos a discutir sobre estas pessoas que vivem neste tipo de atmosfera e na pressão que sofrem no quotidiano. Os curdos vivem sob muitas mentiras que se contam sobre eles. Surgiu então esta ideia do filme, de um drama que se torna um thriller. Acabamos o guião em 6 dias e no 7º fizemos ajustamentos. Por isso, posso dizer que este projeto foi feito em 7 anos ou 7 dias.” 

Para Feri̇t Karahan, aquilo que acima de tudo pretende mostrar na sua obra, é uma forte oposição a uma sociedade “profundamente militar” e a condição da minoria curda no país: “A Morte do Senhor Lazarescu e Cristi Puiu é um dos meus filmes/realizadores preferidos. Aliás, adoro toda a Nova Vaga Romena, tal como o cinema iraniano. Nós somos muito parecidos com eles como sociedade, pois eles tiveram Ceausescu e no Irão foi igual”. 

Desafios

Dois grandes desafios que o cineasta encontrou nas filmagens de  “Brothers Keeper”  foram o frio, que se sente e se entranha no espectador durante todo filme, e o lidar com crianças no set de filmagens. “Porque raio estou aqui com as crianças a passarem frio?”, pensou Karahan várias vezes, agindo em função de uma história que o mundo precisava ouvir e que serve de espelho à condição dos curdos na Turquia: “Aquele espaço geográfico e a própria escola são uma personagem. É um edifício governamental criado para educar crianças, mas tal não acontece. É um espaço de isolamento, de pressão. E tentam educar as crianças como bem entendem. No início do filme não quero  sair da escola porque esta reflete o país em que vivemos. Se retirarmos camada a camada do filme, ele mostra algo muito simples. Mas com essas multicamadas entras mais profundamente nos temas e observas a alegoria mais claramente. Da esperança ao ódio, não esquecendo luta. Tentei desenhar o projeto de forma a mostrar isso tudo”.

.Já ao lidar com crianças, o realizador diz que o seu método com elas é semelhante ao dos adultos, ou seja, mantendo uma distância emocional para conseguir retirar delas o melhor ao serviço do filme. “Lidar com os miúdos foi complexo. Todos atuavam como se estivessem numa série Netflix, onde tinham a atitude de alguém mafioso. Tive que quebrar essa sua forma de ser. Crio uma verdadeira distância com elas, nunca rio, etc. A minha atitude com elas é igual à que tenho com os adultos. É nesse ponto que elas se veem como uma personagem, dando-me muito mais do que eu esperava.” 

No seu próximo filme, “The Death of Black Horses“, que estreará no próximo ano,  Karahan promete um filme alegórico como este, mas o foco vai estar orientado para as mulheres curdas: “Vou tentar mostrar como elas procuram a liberdade e como os homens precisam dar-lhes a liberdade. E critico novamente esta cultura militar muito masculina. Odeio esta cultura porque tenho uma filha”.   

Brother’s Keeper” tem distribuição assegurada nos cinemas.

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