Quarta-feira, 8 Maio

Julien Faraut: desporto, cinema e excelência

Apesar de ser um cinéfilo desde sempre, e de ter tido a sorte de assistir a vários clássicos do cinema em pequenas salas de cinemas de Paris, Julien Faraut nunca imaginou ser realizador quando era adolescente. 

Julien Faraut | © Philippe Quaisse / UniFrance

Os seus pais não tinham ligação à área e foi apenas na Universidade Paris-Nanterre que descobriu o cinema documental e o mundo dos arquivos. Depois de ver um filme de Chris Marker, “Sans Soleil”, diz que teve uma “revelação”, percebendo que era isso que gostaria de fazer no seu futuro. 

Felizmente, a oportunidade de trabalhar nesse registo surgiu, já que um professor de cinema, que também trabalhava no INS (Instituto Nacional do Desporto), convidou-o para colaborar na cinemateca da instituição. A especificidade de serem filmes sobre desporto não meteu medo a Faraut e rapidamente pediram-lhe ajuda para valorizar os arquivos e colecções do instituto, dando-os a conhecer ao mundo. 

A maior parte desse material são filmes que nunca estão no radar e historiadores e críticos de cinema, pois esses filmes técnicos tinham um interesse pedagógico mas não cultural ou artístico. Faraut partiu então para a sua missão, que vê sempre como uma oportunidade que aproveitou.

Tendo em mente os cineastas que ama, em particular os documentaristas que possuem uma linguagem cinemática que acrescenta às suas obras uma forte sensibilidade, Faraut executa “Un Regard neuf sur Olympia 52” (2013). Com Chris Marker como referência no seu retrato dos Jogos Olímpicos de Helsínquia (e o filme ‘Olympia 52’), Faraut parte numa jornada para mostrar o nascimento de uma grande estrela, o atleta da então Checoslováquia Emile Zatopek.

Depois disso, seguiu-se uma observação cuidada a um dos maiores tenistas de sempre, John McEnroe, socorrendo-se mais uma vez da 7ª arte, munindo o seu “John McEnroe: O Domínio da Perfeição “ com pensamentos do crítico Serge Daney, ligando-o à construção da perfeição de um atleta, enquanto reivindicava igualmente os desafios do desporto em transição para o estatuto profissional.

John McEnroe: O Domínio da Perfeição

Chegados a 2021, o cineasta apresenta “As Bruxas do Oriente”, um curioso título que evoca a equipa feminina de voleibol do Japão, na década de 60, que se tornou absolutamente um padrão de excelência na modalidade. Pegando novamente em imagens de arquivo, entrevistando as jogadoras e preenchendo os espaços com sequências de uma animação, Faraut concretiza um dos objetos mais interessantes de 2021, continuando igualmente uma reflexão sobre conteúdo & forma, além de realidade & ficção,

Sentámo-nos no passado domingo com Julien Faraut no jardim do Palácio das Galveias em Lisboa, falando com ele sobre a sua carreira, motivações e o futuro, tudo com atenção ao seu “As Bruxas do Oriente”, que disputa a competição internacional do IndieLisboa.

No seu cinema parece existir uma permanente busca da perfeição, como vemos através de Zatopek, John McEnroe e agora “As Bruxas do Oriente”. O que o fascina nessa perfeição?

Não é tanto a perfeição, mas sim a excelência. Sou atraído pela excelência de certos atletas desse nível, aqueles que conseguem fazer coisas raras. Isso também acontece com músicos, bailarinos, etc. No desporto há gente que atinge esse nível de excelência através de um esforço extraordinário. Gosto também de mostrar, especialmente neste último filme, o preço dessa excelência. O custo disso para estas pessoas. Veja-se o rock ou o jazz, que também adoro. Os tipos num concerto tocam um instrumento, mas passam várias horas por dia a praticá-lo. Têm de trabalhar todos os dias para chegar a esse nível de excelência. Acho isso fascinante. A maior parte de nós vive um quotidiano que podemos chamar de banal e depois vemos essa gente que faz coisas absolutamente loucas. Gosto de dissecar essas performances extraordinárias.

As Bruxas do Oriente

E crê que, especialmente tendo em conta este último filme, é diferente o nível de dificuldade e excelência alcançado no passado por estas pessoas em comparação ao agora, em que está tudo profissionalizado e existem melhores condições para treinar? 

O que me interessava verdadeiramente é que acho que estas mulheres foram realmente pioneiras. Elas introduziram o estandarte deste desporto. Depois delas, muitas mulheres começaram a fazer desporto, E elas mudaram a forma como os homens ocidentais viam as mulheres. Eles não acreditavam que as mulheres fossem capazes de fazer aquilo, de aguentar cargas de trabalho e treino tão intensas. Pensavam que elas eram frágeis e deviam dedicar-se aos filhos. 

Creio que as primeiras atletas deste nível, no sentido contemporâneo do termo, estavam aqui. Quando falamos normalmente dos pioneiros do desporto nunca falamos muito das mulheres, ainda menos de mulheres trabalhadoras na indústria têxtil que praticam um desporto de conjunto e não individual. 

Mas respondendo à questão, se hoje é mais fácil que naqueles tempos, creio que agora treina-se muito menos do que elas faziam e gere-se melhor as coisas. Não se treina tanto, até para evitar lesões. Naquela época e naquele país, o Japão,  as coisas eram diferentes. Eles não treinam como nós, nem tratam os atletas da mesma forma. Essa forma de tratamento não seria compreendida pela nossa cultura. No Japão há uma tradição e cultura de treino extremamente rigorosa e muito duro. E não digo isto de forma pejorativa, pois em tudo o que o país se envolve existe a tal cultura da excelência. O pensamento deles é que para ganhar tens de treinar mais que os outros. Terás de transformar-te um pouco numa máquina para preencher o atraso que tens em relação à URSS, que era a grande potência da época. Se os soviéticos treinavam duas horas por dia, elas trabalhavam seis para superar o atraso que tinham em relação a eles. 

Como foi chegar à conversa com estas mulheres que retrata, tantos anos depois dos seus feitos?

Inicialmente foi extremamente complicado, pois não tinha qualquer contacto com elas. Eu e o meu produtor/a tentamos por ângulos diferentes a aproximação e conseguimos um primeiro contacto, que depois permitia chegar às outras. Além disso, sabia que ia encontrar duas dificuldades: a língua, pois não entendo japonês; e a geração em questão, pois elas eram mais velhas que eu e de uma geração específica. Comunicação e compreensão eram a chave. Resolvi esses problemas através de uma tradutora bastante conhecida em França, que se chama Catherine Cadou. Ela trabalhou com várias equipas francesas no Japão e com japoneses que vinham à França. Também traduzia os filmes de Kurosawa e Ozu. A Catherine tem 74 anos, ou seja, a mesma idade da mais jovem dessas jogadoras, e assistiu mesmo aos Jogos Olímpicos de 1964. Era perfeita para isto.

Encontrei-me pela primeira vez com uma antiga jogadora em junho de 2019. Preparei um questionário e fui sem câmara, apenas com um aparelho para gravar o som. Queria que ela falasse de si mesma e esta era uma maneira de fazer as coisas de maneira particular. Estas jogadoras estavam habituadas a terem muitas solicitações de jornalistas japoneses, mas não de ocidentais, por isso também lhes agradou a abordagem diferente, embora achassem estranho um estrangeiro estar ali para falar com elas sobre isso

Mas tinha uma estrutura, um guião antes desse contacto, ou estava dependente do que as jogadoras diziam e criava o argumento simultaneamente com a montagem?

Não havia um guião. Quando comecei a interessar-me pelo tema verifiquei que imagens de arquivo existiam. Encontrei belas imagens no local onde trabalho e também no Japão. Faltavam os seus testemunhos, que nunca apareciam. Existiam algumas coisas da imprensa sobre o treinador, que apelidaram de “Demon Coach” (um Demónio). Como hoje em dia estas questões estão a ser muito faladas, isto despertou-me também o interesse. Nunca vi aquilo que diziam dele como “maus tratos”, mas apenas a forma de ser da época e do Japão na busca pelo nível máximo do desporto.

Mal percebi que tinha arquivos para trabalhar, recolhi os testemunhos dela. E como tinha esses testemunhos gravados, procurei extratos desses arquivos para juntá-los aos relatos. Este teria de ser um trabalho coral, uma história coletiva, algo que aparece pouco no cinema, pois prefere-se sempre as histórias individuais. Com o que tinha delas para a voz off, depois avancei etapa por etapa, equilibrando os testemunhos e criando uma cronologia.

Também lhes perguntei onde queriam que o filme fosse. Houve duas que tinham certezas, mas outra não. A ideia era corresponder o que diziam com as imagens que tínhamos. (…) Depois de falar com todas, passei à montagem…

As Bruxas do Oriente

E é aí que são introduzidas as sequências de animação.

Sim, elas estavam programadas. Há uns anos, um treinador francês veio à cinemateca do INS depositar um filme japonês em 16mm sobre o voleibol. Vi o filme e fiquei estupefacto com os treinos dessas mulheres, a rapidez dos seus movimentos. Essas imagens reais remeteram-me a um desenho animado que via quando era criança e que era extremamente popular, não apenas em França, mas também em Itália e Espanha. Essas imagens pareciam muito com aquelas dos treinos delas. Na altura, todos pensávamos que o desenho animado era algo caricatural, mas agora percebemos a ligação. Afinal, a inspiração para esses desenhos animados tinha sido aquela equipa. Por isso, na montagem, quis usar essa animação, até para resolver alguns problemas técnicos que encontrei.

Como trabalho com imagens de arquivo, tinha apenas dois relatos de jogos: a final do campeonato do mundo de 1962 e a final dos jogos olímpicos de 1964. Além disso, tinha pequenos registos, uns minutos de uma peça japonesa e outra soviética. Depois percebi que a primeira Manga – que depois foi transformada em animação – foi criada em 1968 e 1969. Chamava-se “Attack No. 1” e gerou uma série de animações semelhantes até 1984. A “Attack No. 1” teve 104 episódios e os dois últimos, que duram vinte minutos cada, eram consagrados a um jogo de voleibol entre o Japão e a URSS.

Tinha assim 3 ou 4 minutos de arquivos, 45 minutos do Japão-URSS, os testemunhos e a série animada. Essa era a solução para um problema técnico que tinha em relação ao material disponível. Por exemplo, na final nós ouvimos principalmente o comentador a falar, algo que para mim era precioso pois usei a transmissão por rádio. Neste filme, frequentemente tinha menos imagens que sons.

Nos seus filmes anteriores havia um maior diálogo entre o desporto e o cinema. No filme do McEnroe, por exemplo, foi buscar o Serge Daney. Antes juntou Chris Marker e Zatopek. Desta vez esse discurso não existe tão diretamente. Era algo que já pretendia fazer?

Cada filme é um filme. Quando amas o cinema como eu, respeitas esta arte e esta profissão. Reflectimos sempre sobre uma forma nova que corresponda ao tema que nos centramos. O objetivo nunca é criar uma ligação artificial. 

Aqui existe mais uma reflexão entre a realidade e a ficção. As pessoas viram os desenhos animados mas esqueceram-se da fonte de inspiração deles. Houve jogadoras de voleibol que começaram a praticar esse desporto porque viram os desenhos animados. E, na verdade, esse desenho animado foi criado porque havia um fascínio com aquelas mulheres que eram reais. Havia aqui uma espécie de cadeia de inspirações entre o real e o ficcional. Creio que essa reflexão no cinema é importante.

O cinema cria imaginários que depois imitamos. Queremos ser como as personagens de um filme e elas integram-se na nossa forma de pensar e de ver as coisas, o que vai inspirar novos filmes. Por isso, acho que  neste filme ainda existe uma reflexão sobre o cinema, mesmo que não o discuta diretamente (…) Existe também um diálogo entre conteúdo e forma, e o utilizar e organizar os arquivos de uma maneira livre, através de elementos que vão dar sentido a essas imagens.

As Bruxas do Oriente

Com todos estes trabalhos criou uma identidade autoral com os seus filmes. Por exemplo, vi recentemente um documentário sobre xadrezistas georgianas, num período também muito complicado, que revelaram a sua excelência. E quando estava a ver pensei no seu “As Bruxas do Oriente“. É como se mentalmente existisse uma catalogação de “filme à Faraut”… (risos). Como se vê dentro do panorama do cinema francês e até mundial, especialmente dentro dos tópicos do cinema e desporto (e as suas conexões)?

Voltamos ao tema inicial, ou seja, inicialmente foi uma oportunidade de entrar num terreno pouco trabalhado. Porém, hoje em dia, curiosamente os meus amigos e até familiares questionam se só faço filmes sobre desporto. (risos)

Pode ser que mude dentro de uns anos, mas continuo a pensar que este não é um assunto que me limita. Nunca podemos ser muito criativos se temos estacas à nossa volta. Eu tenho uma área de ação e se não tivesse provavelmente começava a olhar para o que os outros fazem e dispersava-me. Não há nada de limitante no que faço, pois estas histórias permitem-me chegar a outras (…) Desejo sempre que as pessoas tenham prazer em ver os meus filmes. Neste universo concorrencial, até dos festivais, em que há tantos temas e géneros, é bom estar num menos comum. 

E tem um novo projeto?

Comecei a refletir sobre isso. É um pouco um luxo poder escolher o tema, mas desta vez não será sobre um indivíduo ou uma equipa. Será um verdadeiro desafio, pois ainda não sei como o fazer. De certa forma, eu sou também um jogador. (risos)

Mas será um documentário?

Sim, mais uma vez sobre desporto, mas um pouco mais sobre o cinema, sobre a imagem. Aquilo que reflito nele é o que chamamos de treino mental. Envolve desportistas, mas também músicos. Os músicos, pianistas, gente da ópera treinam muito o virtuosismo. Os desportistas, a imagética dos gestos.  O que me interessa é uma história de imagens.

Descobri coisas extraordinárias sobre o funcionamento do cérebro, sobre a utilização das imagens e a plasticidade sináptica. Esta última significa que quando fazes um gesto, ele deixa um traço no teu cérebro que te ajudará a refazer esse mesmo gesto depois. Pensar num gesto permite treinar esse gesto sem que realmente o tenhas de fazer. Encontrei um neurologista que treina atletas a serem totalmente autónomos através do imaginar e treinar mentalmente. 

Depois do As Bruxas do Oriente estrear em Roterdão e estar aqui no IndieLisboa, qual a importância para si desta rota de festivais, especialmente neste novo mundo em que o streaming ganha força?

Sempre fui um cinéfilo, mas antes de entrar neste mundo da realização não conhecia o universo dos festivais de cinema. Fui descobrindo aos poucos e é uma espécie de mundo paralelo aquele das televisões e mesmo das salas comerciais. É um verdadeiro oásis. Vemos filmes verdadeiramente livres, em que os autores fazem o que realmente querem. Nos festivais encontramos coisas que depois nem na Internet encontramos. 

Além disso, nos festivais temos a projeção dos filmes num grande ecrã. Sou muito agarrado a isso, até porque trabalho muito sob formatos e o escopo, e como os ecrãs de casa não são assim tão largos, para adaptar um filme meu à TV temos sempre de fazer uma versão para ela. (…) Para mim, a forma de fazer um filme e a liberdade da expressão audiovisual, não é uma sala de cinema. Quando digo que faço filmes para cinema, digo que são filmes que têm liberdade de se expressar (…) Quando digo que faço algo para cinema, não significa que será para ser visto dentro das salas de cinema num grande ecrã. Quando falo em fazer cinema é de ter uma aproximação livre, singular aos filmes e à 7ª arte. Falo de uma expressão que se interessa à forma e não apenas ao tema.

Mas atenção, todas as formas são boas, não digo o contrário. Até mesmo nos festivais podemos ver um filme muito bom formalmente, mas quando observam que o tema é desporto, não o consideram suficientemente sério. Por isso, muitas vezes a temática é um handicap. Alguns eventos afastam-se mesmo quando descobrem que o tema é desporto. Isso para mim também funciona como um desafio, o provar que todos os assuntos são interessantes.

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