Sexta-feira, 17 Maio

Traições: Arnaud Desplechin adapta Philip Roth

Nos cinemas a 21 de abril

Figura habitual na programação do Festival de Cannes (Os Fantasmas de Ismael; Roubaix), Arnaud Desplechin apresentou na edição 2021 do certame a adaptação da obra literária de 1990 de Philip Roth, “Deception” (Traições), um sonho antigo que finalmente concretizou, com ajuda do confinamento derivado da pandemia Covid-19.

Pensava neste filme há anos e sempre que começava a escrever, falhava.“, disse o cineasta ao C7nema, em Cannes, no ano passado. “O Roth é um escritor americano e eu sou francês. Era um livro em inglês, tinhas a Inglaterra, a América, a Checoslováquia. E era uma peça de época. Como posso adaptar este livro a filme? (…) Quando já estava na quarta tentativa, há seis anos, dei as páginas que escrevi à minha companheira para ela as ler. Ela disse-me, sem problemas, que o texto não estava bom, que não devia avançar com o filme. Porém, desta vez, quando estávamos no confinamento, algo na personagem – que também está encerrada no escritório – fez clique em mim. Escrevi e escrevi e desta vez a minha namorada leu e disse para eu avançar. (…) Há 20 anos, quando estava a fazer o ‘Reis e Rainha‘ com a Emmanuelle Devos, filmamos o epílogo deste livro como extra do DVD. Um dia, o Philip Roth telefonou-me e eu parecia uma criança nervosa a falar com ele. Esse epílogo chegou de alguma forma até ele e disse-me para eu adaptar o livro tal como ele tinha visto nessa pequena cena. Ele estava certo e levou-me 20 anos a descobrir o quão certo ele estava”.”

No centro do “insolente e profundo” livro de Roth, transformado em filme por Desplechin, estão dois adúlteros no seu esconderijo. Ele, um escritor de meia-idade chamado Philip (Denis Podalydès), ela uma inglesa refém de um casamento a que está resignada (Léa Seydoux). A ação é feita de diálogos, principalmente conversas entre os amantes antes e depois da atividade sexual. “Escrevi o projeto a pensar na Léa. Ela é incrível. E foi incrível tanto no filme do Abdellatif Kechiche como no da saga James Bond (Spectre). Aliás, estou à espera de a ver novamente no novo (007 – Sem Tempo para Morrer, entretanto estreado) pois ela estava impressionante em “Spectre”. Agora amadureceu, é uma mulher feita e queria vê-la assim, em cena. Escrevi o guião  a pensar nela, o que até foi estúpido pois quando a convidei não tinha nenhum plano B [caso ela recusasse]. A Lea tem um toque de nobreza, mas simultaneamente também o de alguém comum. Conheço-a já como atriz do “Roubaix”, o meu anterior filme, e sabia que era alguém com grande bravura. Para este papel, tinha a noção que ela podia falar por si própria e não apenas pela personagem. Poderíamos ouvir a sua voz.

Denis Podalydès e Léa Seydoux

Continuando a mostrar o seu fascínio pela atriz, Desplechin prosseguiu: “A Léa é muito corajosa ao aceitar trabalhar para mim e fez o mesmo ao aceitar trabalhar com o Bruno Dumont.  Ela tem um grande apetite por cinema. Neste sentido, faz-me lembrar a Catherine Deneuve. Tem a mesma energia e a mesma concepção nobre do que o Cinema deve ser. Imaginem o que é estar no mesmo ano em Cannes em filmes do Bruno Dumont e do Wes Anderson? É algo incrível. Creio que passámos um bom bocado nas filmagens deste ‘Traições. Ela tem uma grande intuição. Trabalhar com ela foi muito fácil.”.

A importância de Roth na carreira de Desplechin

A importância de Philip Roth na carreira do cineasta francês é conhecida. O próprio, numa entrevista ao C7nema a propósito de “Roubaix, explicou-nos que uma das coisas que o levava a querer filmar na região de onde era natural era uma influência direta vina do escritor: “Lia as novelas do Philip Roth e a ação delas passava-se em Newark. Quando visitas Newark, não há nada para ver. A humildade dele dizer que não pertence a Manhattan, como a minha em dizer que não pertenço a Paris, Lyon ou Marselha. Pertenço a uma cidade humilde e foi nela que filmei o meu primeiro filme, “La vie des morts”. Quis ter orgulho onde muitos têm vergonha, mostrar esta cidade e os seus problemas numa bandeira.

Adaptando agora uma obra do autor que admite “venerar“, Desplechin explicou-nos toda a extensão do impacto do norte-americano na sua carreira: “A maior lição que tive como cineasta vem de escritores como o Roth, que usa-se a si mesmo como material para a escrita. Ele usa a própria vida, o seu pai, a sua masturbação como material. E pega nisso tudo e transforma numa comédia. Adoro isso e é por isso que valorizo muito os atores. Todos os técnicos e artistas podem-se esconder por trás das suas ferramentas. Um pintor usa o pincel e as cores. O pianista usa o piano. O diretor de fotografia usa a câmara. O ator é a sua própria ferramenta e artista. O Philip fez isso. Quando o descobri tinha 25, 26 anos e foi aí que percebi que eu tinha de ser o meu próprio material. Se eu queria deixar de ser um técnico e transformar-me num realizador, num autor, tinha de agir como o Phillip Roth. Ser eu mesmo o meu material, (…) Identifico-me a 100% com ele e com a personagem que coloca no filme ligada a ele”.

O #MeToo antes do #MeToo

Além de uma história sobre dois amantes que se perdem em vários dilemas e conversas, “Traições” foca-se num famoso autor que a certo ponto é, numa situação bastante caricata, levado a um tribunal onde surgem acusações de um mau tratamento às personagens femininas na sua obra. 

Denis Podalydès e Léa Seydoux

O engraçado é que o Philip Roth escreveu essa cena há 30 anos e ela mostra com alguma precisão o movimento #MeToo. É um choque (risos)“, diz Desplechin, adicionando: “Mas em vez de ele o mostrar como uma bandeira, mostra-o como algo cómico e absurdo. Tive de lidar com isto agora de forma bastante ponderada, pois não queria ir contra o Phillip, pois adoro-o, mas também não queria ir contra a “procuradora” na cena, pois ela também tem razão. Os dois têm razão. Um assume a causa de todas as mulheres e o autor responde que está só a falar de uma mulher, a Léa. No final, a personagem do autor acusado de misoginia está rodeada por todas estas mulheres. Para colocar pressão nele eu pedi a este famoso advogado francês. E de repente ele fica louco e começa a improvisar. Mas é verdade, é uma cena impressionante quando olhamos para ela e vemos o movimento #MeToo. Sobre esse movimento, a única coisa que acho que temos de ficar contentes é com ele pois novas vozes estão a ser ouvidas. Mas naturalmente ele também tem o seu lado cómico e paradoxal. O mundo está cheio de paradoxos e o que é importante nisto tudo é que muitas vozes de mulheres que nunca foram ouvidas no passado estão agora a serem escutadas.

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