Quinta-feira, 9 Maio

“A Traveler’s Needs”: um trago semiótico sobre a falta de dinheiro… e de pertença

Numa bem-humorada entrevista concedida durante a Berlinale 2024, a atriz francesa Isabelle Huppert assumiu publicamente que não bebe (quase, só um golinho aqui e ali), mas teve uma experiência etílica exótica com o Makgeolli, bebida que entorna – garganta adentro – durante os 90 palavrosos minutos de “A Traveler’s Needs”. É um fator inerente aos rizomas audiovisuais do sexagenário realizador sul-coreano Hong Sangsoo as personagens beberem… um bocado.

Comer e fumar são verbos essenciais à sua obra também. “Yeohaengjaui Pilyo” (título original) da sua nova longa-metragem, nomeada ao Urso de Ouro, não foge à risca, sintonizado com a vocação autoral que faz do cineasta uma grife. Grife que nem sempre desperta sensos unânimes. Até o curador do Festival de Berlim, Carlo Chatrian, brincou com isso, ao anunciar o seu nome quando divulgou o line-up da competição oficial da 74ª edição do evento:: “dizer que [Sangsoo] se repete e faz sempre o mesmo filme é não perceber sua grandeza”. O elemento Huppert já seria um item de desempate nesta que promete ser apenas uma das duas ou três produções a serem lançadas por ele daqui até dezembro (pois essa é a sua marca anual). Mas há outros pontos de diferenciação.

Isabelle esteve com ele em “La Caméra De Claire” (2017) e em “In Another Country” (2012). “É bom voltar a ele, um realizador que não tem argumento, não tem história, mas tem liberdade, para filmar em Seoul”, disse a atriz, numa declaração fundamental para um raciocínio crítico que se detenha sobre a troca dos dois.

Iris, professora de Francês vivida por Isabelle, sai derrubada das bicadas que dá nessa forte bebida, ao lado de amigos. Fica alegre, fala mais do que deve e põe-se a acariciar amigos que estão acompanhados por figuras femininas. Iris só não perde a medida da sua limitação financeira. Ao voltar para casa com metade do dinheiro do aluguer, fica toda pimpona, a celebrar o seu feito. Fala dos seus bolsos meio vazios várias vezes, como justificativa para o devir educadora em que se enfiou, mesmo não sendo artesã da Gramática de Balzac e de Proust.

Estar numa metrópole gera um vetor distinto à ramificação da estrela mais prolífica da França com um dos realizadores mais prolíficos do planisfério cinéfilo. A tal bebida do parágrafo acima é uma das variáveis dessa nova equação. Apesar de parecer um iogurte (ou a guloseima láctea que, no Brasil, chama-se de Yakult), o Makgeolli é um vinho de arroz típico da Coreia do Sul. É doce e tem aspeto de leite, gerado por meio de um processo de fermentação com uma taxa de álcool de cerca de 7%. Para entendedores (ou aqueles que estão habitados a beber): um copo parece inofensivo, mas… na segunda dose, derruba.

Produtor, compositor da banda sonora, editor, argumentista e fotógrafo do filme, tal como na maioria dos seus projetos, Sangsoo sempre abre espaço para debates financeiros nas várias conversações que servem de espinha dorsal de sua filmografia, iniciada em 1996 com “The Day a Pig Fell Into the Well”. Esse interesse monetário ampliou-se a partir de “Walk Up” (2022), um dos seus exercícios reflexivos mais refinados, indicado à Concha de Ouro de San Sebastián.

O que se vê em “A Traveler’s Need” é uma expansão mais potente, e mais sociológica do tema, referendado pela alteridade, a partir da jornada de uma estrangeira europeia numa Ásia de signos (e bebedeiras) que não domina. Essa falta de intimidade, sinal da carência do sentimento de pertencimento, é o “fator X” que resolve (parcialmente) incógnitas simbólicas da semiologia de relações que Sangsoo faz aqui.

Por vezes, adora-se odiar os seus filmes pela (aparente) simplicidade da sua aeróbica de zooms em narrativas calcadas em encontros, banquetes e divagações sobre as angústias da vida. Neste caso, entre pausas para um cigarrinho aqui e ali e umas bicadinhas no Makgeolli, o cineasta expões fraturas de alguém que se encontra fisicamente de passagem, com a alma desterritorializada, num desenraizamento de uma Europa distante.

O colorido um tanto esmaecido assumido por Sangsso como visual que deu ao filme, na tela da Berlinale, um aspeto cru, de pouco acabamento. Mas uma reflexão mais atenta aponta um desbotamento que traduz o próprio estado de Íris, sem os pigmentos culturais que balizam o seu entendimento da realidade. As falas da mulher causam graça, mas compartilham connosco agruras sentimentais que o diretor de “Hahaha” (2010) sabe esquadrinhar como ninguém, capaz de chafurdar no lodaçal da existência nas suas digressões aparentemente triviais sobre o dia a dia (e o querer). Neste novo guião, não vai tão fundo nas charnecas da alma, talvez pelo tom argentário da trama. Mesmo assim, os abismos, os de Íris e os nossos, estão lá.

Pontuação Geral

Rodrigo Fonseca

Notícias

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