Quinta-feira, 25 Abril

É Tudo Verdade: Ziembinski noutro palco, o Presente

Há teatro na maior maratona documental da América do Sul: o festival É Tudo Verdade, que abriu a sua 26ª edição na quinta-feira passada, 8 de abril, oferecendo online – na plataforma Looke – 69 produções de curta e longa duração de 23 países. Nesse pacote de filmes, as artes cénicas estão (bem) representadas por “Zimba”, de Joel Pizzini, com projeções agendadas para os dias 14 e 15 de abril. A sua narrativa (de ágil montagem) foca-se em Zbigniew Ziembinski (1908 – 1978), pilar da reinvenção dos palcos brasileiros, responsável por uma montagem de “Vestido de Noiva” que inaugura o teatro moderno no seu país, em 1943.

Polaco radicado nas ribaltas brasileiras, Ziembinski tem os seus feitos como ator, diretor e pensador da cena revisitados pelo realizador do aclamado “Olho Nu” (2012), sobre Ney Matogrosso. Há seis anos, concorreu ao Urso de Ouro da Berlinale com “Mar de Fogo”, sobre o cineasta Mário Peixoto (1908-1992). Segundo o cineasta, o filme “é uma espécie de autorretrato em terceira pessoa com a recriação de sua trajetória desde a Polónia, antes da fuga, na II Guerra para o Brasil, com raras imagens de arquivo extraídas de acervos brasileiros e polacos, com cenas dele como ator e realizador de um filme rodado em Varsóvia”.
Zimba” é narrado por Nathália Timberg e Camilla Amado, que trabalharam com Ziembinski. Pizzini incorporou ainda à narrativa uma participação especial de Nicette Bruno, com quem fez o ‘Anjo Negro’, em 1948.

No filme, Pizzini revisita os momentos mais marcantes da biografia de Ziembinski, que montou peças de Thornton Wilder (“Nossa Cidade”) e de Bernard Shaw (“Pais e Filhos”) no Brasil equalizando os processos locais das artes cénicas com os métodos europeus de concepção. No Rio de Janeiro, então com 33 anos, aproxima-se da companhia Os Comediantes, formada por artistas e intelectuais interessados na dramaturgia moderna. A sua abordagem, ao encenar textos locais e estrangeiros, bate em convenções morais vigentes. Na entrevista a seguir, Pizzini explica ao C7nema como moldou a representação do passado para retratar o quão perenes são os feitos de Ziembinski.

Joel Pizzini

Como funcionou o garimpo de imagens de arquivo de Ziembinski?

Considero-me um cineasta pesquisador que, em “Zimba”, contou com a “expertise” de Antônio Venâncio (ícone da pesquisa no Brasil) e a assistente de direção Sofia Guimarães, com a contribuição da Kalejdoskop, coprodutora polaca que facilitou o acesso aos acervos de lá.  A coprodução com a Globo Filmes, GloboNews e Canal Brasil permitiu um mergulho privilegiado nos arquivos do CEDOC onde existem numerosos e preciosos registos da passagem de Zimba pela emissora. Vale a pena destacar a paixão dos arquivistas da Funarte, CTav, EBC, TV Cultura, Arquivo Nacional e, em especial, da Cinemateca Brasileira, que preserva os originais dos filmes em que Zimba atuou. Sem o apoio destes colaboradores, seria impossível abarcar todo o percurso audiovisual de Ziembinski. Graças ao acervo da Cinédia (companhia cinematográfica fundada em 1930), incluímos a primeira imagem de Zimba no Brasil, do filme “Samba em Berlim” (1943), de Luiz de Barros. Em contraponto aos registos pré-existentes, a fotografia de Luis Abramo experimenta o uso do vídeo-mapping elaborado pelo artista visual, Glauber Viana. Assim as atrizes, contracenam frente a frente com a imagem de Zimba.

O que a frase “uma burguesa nunca é livre”, dita no seu documentário pela atriz Camilla Amada, revela sobre o Brasil, a partir dessa tua cinebiografia que aposta em muitas vivências para além do próprio Ziembinski?


Camilla Amado, que protagonizou a remontagem de “Vestido de Noiva”, em 1976,  dirigida pelo próprio Ziembinski, é uma artista outsider e interpreta com propriedade o sentido da personagem Alaíde, que vislumbra na figura da (cafetina/proxeneta) Madame Clessy a fantasia da liberdade feminina, massacrada no contexto patriarcal em que a peça foi concebida. É difícil falar pela Camilla, mas, do meu ponto de vista, essa opressão, sobretudo em tempos de pandemia, agravou-se mais ainda. É bom ver que Zimba tem na proa da produção duas mulheres, Ursula Groska (in memoriam) e Vera Haddad, que viabilizaram o filme, enfrentando desafios oceânicos.O próprio Ziembinski sofreu na pele a discriminação burguesa pela sua orientação sexual e pela condição de estrangeiro. Ele foi obrigado a conter-se nos seus posicionamentos públicos. Embora fosse acusado de apolítico, teve a sua última peça, “Quarteto”(1976) com direção de Antonio Bivar, proibida pela ditadura militar. Como metáfora dos espetáculos, o documentário busca se libertar das convenções e limites da linguagem cristalizada, jogando luz em aspectos pouco abordados como o mito, o sonho e a imaginação, que são componentes poderosos para examinar a complexidade do mundo real, muito além das ilusórias aparências.

Como funciona a construção da montagem de um filme que dialoga com a memória? Como é ordenar a memória?


Zimba” é articulado em primeira pessoa, por meio da montagem de materiais de arquivo narrados pelas atrizes Nathália Timberg, Camilla Amado e Nicette Bruno, que relatam e interpretam situações cénicas, revelam o convívio íntimo com o diretor, e comentam o ideário de Ziembinski. Como premissa, o filme é conjugado no tempo presente, o tempo da memória não linear e cíclico, para que o espectador possa vivenciar o universo criativo no ato, evitando-se o tom nostálgico, como se o artista fosse um fenómeno do passado, e precisasse ser catalogado como peça de museu. Ziembinski está no ar, e de volta às telas. Com a parceria de Idê Lacreta, que desde “Caramujo-Flor” vem trançando os meus “cinensaios”, aproximamo-nos da personagem Ziembinski pelos vãos, paradoxos, textos e texturas subtis e evidentes na sua obra. Ali, suas velhas imagens, conforme ensina Harun Farocki, ganham novos sentidos. No plano musical, Lívio Tragtenberg dialoga com a arte de Chopin, outro mestre polaco que rendeu o papel de maior sucesso de Zimba como ator, no teatro pré-exílio.

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