Terça-feira, 19 Março

‘Dentro da Minha Pele’: um grito documental de ‘Basta!’ contra a intolerância racial

Violências raciais dos mais rasteiros tipos, cometidas no dia a dia da microfísica da intolerância, são o foco das experiências de vida compartilhadas, na franjas da generosidade, por nove protagonistas de uma Comédia Humana em forma de documentário chamada “Dentro da Minha Pele”, que estreia neste domingo no streaming Globoplay.

São Paulo, maior metrópole do Brasil, é o cenário da investigação empreendida pela socióloga e documentarista Val Gomes e pelo cineasta Toni Venturi. Um olhar vem da prática das Ciências Sociais; o outro, vem de uma trajetória que alterna documentários (“Dia de Festa”) e ficção (“Cabra-Cega”).

Na própria fortuna crítica usada como divulgação da longa-metragem, a dupla sublinha a diversidade em seus viveres: ela tem origem indígena e negra; ele é um descendente de italianos brancos. Na escolha de quem fala houve um denominador comum: todos têm a triste experiência de terem sido vítimas do racismo estrutural. Este é o sintoma da segregação que gera experiências de dor mas que produz, como reação, sopros de superação, de resistência e de reinvenção. Entre as histórias contadas no projeto estão a do médico Estefânio Neto, da modelo-performer Rosa Rosa, dos estudantes universitários Wellison Freire e Jennifer Andrade, da funcionária pública e ativista trans Neon Cunha, da trabalhadora doméstica Neide de Sousa, da vendedora de imóveis Marcia Gazza, e do casal formado pela professora do ensino público Daniela dos Santos e o empregado Cleber dos Santos, que estão à espera do primeiro filho.

Ao longo do documentário, seis pensadores negros enriquecem o debate, com reflexões sobre o racismo no Brasil. São eles: a psicóloga Cida Bento, a escritora Cidinha da Silva, a arquiteta  Joice Berth, o dramaturgo e pesquisador José Fernando de Azevedo, o historiador e músico Salloma Salomão e a filosofa Sueli Carneiro. Os depoimentos de três cientistas sociais – o sociólogo Jessé Souza, a psicóloga Lia Vainer Schucman e o tenente-coronel da Polícia Militar Adilson Paes – complementam as entrevistas.

Os respiros poéticos durante o filme ficam por conta da música negra contemporânea e do slam de jovens periféricos. Num atelier de arte e pintura, as cantoras Bia Ferreira e Doralyce interpretam a canção “Cota não é Esmola”; Chico César apresenta uma nova versão de “Respeitem meus cabelos, Brancos”; Luedji Luna aparece cantando “Iodo”; Thaíde traz o rap “Algo Vai Mudar”; Valéria Houston interpreta o samba “Controversa”; e Anicidi Toledo, junto do Batuque de Umbigada, dançam a umbigada “Luís Gama”. Numa favela do Capão Redondo, os jovens slamers Bione e Barth Viera comparecem com a poesia produzida na periferia da cidade.

Na entrevista a seguir, Val e Venturi falam do que viveram e do que (e como) contam.

Como foi feita a triagem das pessoas que falam sobre a sua experiência do racismo?
Val Gomes: 
Inicialmente ao trabalho de pesquisa houve uma sensibilização com o Toni porque, no princípio, ele não conseguia dimensionar o impacto dos “racismos velados” nas pessoas negras. Ele achava que, para sensibilizar o espectador, a gente precisava explorar mais as histórias com racismos mais contundentes. Situações mais extremas, como por exemplo, a história da advogada que foi algemada no Fórum, os xingamentos de macaco de um jogador de futebol etc. Eu, ao contrário… o que me interessava era contar os racismos que acontecem no silêncio e na cumplicidade do quotidiano. Aquele que muitas pessoas “não vêem” e que as pessoas negras são submetidas sistematicamente.

De que maneira o cinema feito no Brasil dos últimos trinta anos – que é o período mais fervoroso da sua produção audiovisual – ajudou a driblar o racismo estrutural?
Toni Venturi:
 Acho importante fazer um corte entre o momento do conhecimento e o da cegueira. Enquanto cegos, podemos viver na ignorância e aceitamos as coisas do jeito que são, porque nos acostumamos a estar no mundo do jeito que ele é. E, como brancos, estávamos numa situação confortável e muito cómoda. Mas após a revelação… a consciência da questão racial…, vem a dor e, posteriormente, a ação.

Hoje parece fácil enxergar uma situação que se apresenta como gritantemente injusta. E, não é mais admissível, ignorar a colossal injustiça e dívida que o Brasil tem com a sua população afrobrasileira. Vivemos em bolhas e, anos atrás, nos tempos analógicos, estávamos mergulhados em bolhas ainda mais profundas, dentro do nosso meio social, seja ele o da classe média, do rico ou do pobre. Ainda hoje, com a internet e intercomunicação digital, os muros invisíveis estão aí, separando as pessoas, segregando geograficamente os cidadãos em classes, clãs e castas. O racismo estrutural no meio audiovisual fazia com que trabalhássemos sempre com as mesmas pessoas, chamássemos sempre os mesmos profissionais, já testados e experientes, e isto vai automaticamente criando as “panelas”. Quem tinha oportunidade para vir a ser um diretor? Um fotógrafo? Um montador? Um produtor? Aquele que estudou, que aprendeu, que teve uma indicação de alguém, ou seja, o branco que tem família estruturada, condições de obter uma boa educação e que pertence a este círculo social. Assim está organizada a nossa sociedade de classe (eixo vertical) e as suas panelas corporativas-profissionais (eixo horizontal). Este fenómeno acontece em todos os meios das boas profissões, entre os médicos, juízes, engenheiros, intelectuais, jornalistas, professores, artistas etc. E, em função da perpetuação de um passado colonial desonesto, a presença negra dentro de cada uma dessas panelas foi sempre a mais desfavorecida. Uma vez consciente desta barbárie, há que se lutar contra esta injustiça. Dentro do nosso próprio meio, o cinema, isto é possível criando oportunidades para as negras e negros que buscam se profissionalizar no audiovisual. A nossa produtora Olhar Imaginário criou um Portal Antirracista para projetos de criadores e profissionais negros. Val Gomes é a responsável por esta coordenação.

Como foi a troca com Toni na investigação do quotidiano das vozes escolhidas para o filme?
Val Gomes: 
O contato que tivemos com os coletivos de teatro negro quando gravamos a série “Cena Inquieta” (que está indo ao ar todas as quintas-feiras no Brasil, no SescTV), e que antecedeu a produção do “Dentro da Minha Pele”, preparou o Toni para essa mudança de olhar.  Assim, partimos para a prática. Criamos uma rede com nove pesquisadores, maioritariamente moradores da periferia. Essa era uma premissa também do filme: que o dinheiro chegasse em outros territórios. Preparamos esses profissionais, criamos uma folha de cálculo para que eles a preenchessem com todos os dados (nome, idade, sexo, origem, profissão etc) e resumos das histórias de racismo, preconceito e superação das pessoas que eles pesquisaram. Os pesquisadores também gravavam um vídeo da pessoa que contava a história dela. Eu fazia uma primeira triagem. Se sentisse que valia a pena, pedia para o pesquisador aprofundar alguma coisa e discutia os filmes com o Toni. Levamos em consideração os quesitos da classe social, tom de pele, situações de racismo, articulação verbal, carisma de tela e superamos o facto de ser uma pessoa pública ou comum. No decorrer da produção fomos cortando as pessoas conhecidas para ficar com o cidadão comum. O médico Estefânio Neto, por exemplo. No nosso mapa de personagens faltava alguém da área da biologia ou de ciências exatas. A minha mãe, já idosa, foi hospitalizada e numa das visitas vi uma jovem linda com um cabelo black. Eu me aproximei e perguntei-lhe se havia médicos negros naquele hospital? Ela abriu o Instagram e me mostrou o Estefânio. Depois, foi uma saga conseguir contato com ele na UTI, mas deu certo!

Como foi a troca com Val na construção da narrativa?

Toni Venturi: Responsável pela pesquisa de personagens, ela foi ganhando importância e dimensão cada vez maior à medida que questionava os meus valores, privilégios e visão de mundo. O ponto de partida foi “A Elite do Atraso”, do Jessé Souza. Esse livro fez a minha cabeça. Mas a Val apresentou-me a Carolina de Jesus, Sueli Carneiro, Conceição Evaristo, Maria Lucia da Silva, Silvio Almeida, Cidinha da Silva, Djamila Ribeiro, Cida Bento, Salloma Salomão e muitos outros. Abriu o meu olhar para pensadores e filósofos negros e para a questão racial do Brasil. Isto foi revelador. Até que chegamos num ponto da produção onde era importante conseguirmos brancos assumidamente racistas. Mas é muito difícil conseguir que alguém que assuma frente à câmara ser um supremacista, que confesse sua superioridade racial, que defenda o racismo, que fale o que pensa e sente no fundo de seu coração. Então, foi quando tivemos a ideia de eu me colocar frente ao espelho e servir como esse contraponto. Foi aí que trouxemos a história da minha família imigrante italiana. Eu diria que o processo foi evolutivo, dialéctico, rico e doloroso. Brigamos muito, fiz um exercício de humildade e cresci com isso. Sou grato à força das ideias dela.

De que maneira a violência racial se transforma hoje no Brasil? O filme mostra exemplos de resistência, mas solta, pelas frestas, a percepção de que o racismo monta, de alguma forma, uma microfísica de continuidade, em novas (e selvagens) práticas no dia a dia. Que práticas o filme revela?
Val Gomes: 
O filme revela práticas de racismos dos mais velados aos explícitos, como ser seguida numa loja (suspeita de roubo); duvidar da sua profissão (incompatível com ser negro); ser olhada de maneira “diferente” por estar num lugar de redutos de brancos; ser abordado por um policia; não ser promovida embora tenha formação e competência. A gente mostra que, nessas situações, a cor da pele é utilizada para não reconhecer, desqualificar, suspeitar e incriminar a pessoa negra.

O que esse espaço do streaming, com o Globoplay, oferece para um filme de urgências como este? O que o streaming abre para o documentário, sobretudo o mais autoral?
Toni Venturi:
 Acho extremamente importante para a causa antirracista um filme com este conteúdo social ter destaque numa plataforma de diversão e entretenimento. Mostra que um documentário é também um produto de sensibilidade, divertimento e contemplação. A narrativa do nosso filme não é um discurso “dedo em riste”, mas uma elaboração formal e artística para uma profunda jornada emocional. Ao final, o filme convida o espectador (branco e negro) a sair de sua zona de conforto e fazer a sua parte na luta antirracista.

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