Sexta-feira, 26 Abril

Sonhámos um País: da alegria da libertação de Moçambique à destruição dos sonhos e ilusões

Uma coprodução portuguesa com a ambição de estrear em Moçambique

São assuntos que grande parte das pessoas desta sala conhecem, mas que nunca foram colocados em público, nunca foram falados, nunca foram ditos.“. Estas foram as palavras de Camilo de Sousa, cineasta moçambicano que assinou o documentário Sonhámos Um País, uma viagem aos tempos da luta pela independência, da transição para a liberdade nas fileiras da FRELIMO e da desilusão que veio a seguir com alguns dos métodos utilizados.

Se durante a época colonial, Portugal sempre usou nomes pomposos como “Campanha de Pacificação” para atividades de conquista e subjugação – como Billy Woodberry tão bem demonstra no seu brilhante A Story From Africa – na Moçambique depois da independência, outros eufemismos foram utilizados para criar estruturas “maquiavélicas”. Um bom exemplo são os chamados “campos de reeducação”, verdadeiros espaços de tortura que Samora Machel ainda tentou conter em 1981, com a chamada “ofensiva da legalidade”, descrevendo num comício as práticas que sabia serem norma no “campo de reeducação” de Ruarua como “palha no estômago“.


Aleixo Caindi, um dos enviados para um “campo de reeducação”

Havia uma natureza política nesses “campos de reeducação”, mas depois existia o efeito deles nas pessoas, afirmou no passado sábado Isabel Noronha, correalizadora do documentário, numa conversa com o público que se seguiu à exibição do filme: “Pertenço a uma geração – tinha uns catorze anos nesta época – em que o efeito disto [dos campos de reeducação]” era temível. “Qualquer coisa que fizéssemos, mesmo na escola, estávamos sujeitos a ir parar a esses campos de reeducação. E esse qualquer coisa não estava descrito, não havia nenhuma lei que dissesse: ‘Você vai parar aos campos de reeducação se for malcriado com o professor, ou se fumar na porta da escola, ou se ficar grávida, mas estes eram os motivos pelos quais viamos colegas nossos irem para a ‘reeducação’. Era uma espécie de guilhotina sempre na nossa cabeça. A nossa colega Ornila, filha do próprio Samora Machel, foi para a reeducação com 14 anos porque engravidou. Ela e o Edgar, que era namorado dela. Sumiram da sala de aula, mesmo na porta ao lado da nossa. Estas coisas, o efeito destas coisas nas pessoas da minha geração levou à criação do silêncio. É a criação da ideia de que é melhor não falar nada, porque qualquer coisa que se diga pode ser interpretado como sendo contra. As pessoas crescem caladas, a pensar sozinhas, inclusivamente a desconfiar do seu próprio pensamento“.

A dupla frisou ainda a dificuldade de falar destes temas hoje em dia, não apenas dos “campos de reeducação”, mas igualmente na “Operação Produção”, na qual o governo da FRELIMO decidiu enviar milhares de pessoas “improdutivas” das grandes cidades para o campo, em especial para Niassa. Camilo, um “não alinhado na sua natureza“, como alguém no público o descreveu, afirma que Machel foi traído após avançar com a “ofensiva da legalidade” com a chegada em 1983 desta “Operação Produção”, um tema tabu no país, até hoje.

Autocensura e medo

Para Camilo de Sousa, era preciso falar destas coisas que tornaram o “governo popular da FRELIMO em impopular“, mas também era necessário “ter cuidado na forma como dizer“, até porque, apesar de tudo, a democracia moçambicana é muito frágil, como se viu nas recentes eleições com o ressurgimento dos esquadrões da morte: “Há muito mais para contar“, garante o realizador, que sublinha que o seu filme não tem absolutamente nada contra o país, as instituições ou contra a própria FRELIMO: “[O filme] é contra métodos utilizados [no passado] e que ainda hoje continuam a ser. (…) Penso que a FRELIMO se devia regozijar com este filme, por aparecer alguém, dentro da própria FRELIMO, a dizer… ‘os métodos eram estes’. Não podemos continuar a vida toda nesse processo (…) Nós vimos agora nas eleições… uma vergonha. (…) A intransigência da FRELIMO, é preciso mudar. Ir por outras vias. Que haja um processo de reconciliação. (…) Hoje é quase proibido falar da ‘Operação Produção. As pessoas não querem falar. Umas têm medo, outras têm vergonha. (…) Ninguém quer falar dos maus tratos, sobre uma pessoa ser presa por ter uma amante, ou uma rapariga que engravida e vai para o campo de reeducação. E tem o filho nesse campo sem o mínimo de condições”.

Salvar os arquivos cinematográficos históricos

Uma grande quantidade de filmagens executadas em 16mm, executadas pelo próprio Camilo, encontram-se guardadas no INAC – Instituto Nacional Audiovisual e Cinema, em condições muito precárias. “É uma dor de alma ver como arquivos tão importantes estão guardados sem condições . Sem ar condicionado, às vezes sem eletricidade. Para terem ideia, quando pedimos acesso a este material, a pessoa que estava a cuidar dos arquivos disse: ‘está bem, mas tem de ser daqui a dois dias’. Eu perguntei porquê. Ela respondeu que não podia entrar muitas vezes naquele arquivo porque está sem eletricidade, não tem extrator de ar ou ar condicionado. ‘Cada vez que entro tenho de suster a respiração, entrar com uma lanterna, procurar um pouco, localizar o que consigoe voltar a sair a correr e respirar por causa do cheiro do ar’ . 

É preciso que haja vontade política de voltar a ver material para que que aconteça alguma coisa. Já houve, inclusive, diversas vezes em que conseguimos através da nossa associação de cineastas financiamento para a recuperação daquele espaço e não houve vontade do estado em o fazer“, afirmou Isabel Noronha.

 

Exibições no Doclisboa

19-10-2019 – 15:30 – Culturgest Grande Auditório
26-10-2019 – 16:15 – Culturgest Pequeno Auditório

 

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