Quinta-feira, 18 Abril

Sérgio Machado: “Nos meus filmes, os homens nunca entendem as lições que as mulheres dão”

Com uma carreira intensa entre o cinema e a televisão, o brasileiro Sérgio Machado levou até Talinn, na Estónia, ao Festival Black Nights, o seu mais recente projeto cinematográfico, “O Rio do Desejo”, um filme baseado na escrita de Milton Hatoum (Cidade Ilhada) e que nos leva à saga de três irmãos (interpretados por Daniel de Oliveira, Rômulo Braga e Gabriel Leone), que vão sentir uma forte atração por uma jovem (Sophie Charlotte) que entra nas suas vidas.

Drama de fraternidade, onde mais uma vez – como é comum na obra de Machado – é uma mulher que ilumina a escuridão da vida dos homens, “O Rio do Desejo” revela-se um grande retorno do cineasta por trás de “Cidade Baixa” (2005) e “Tudo Que Aprendemos Juntos” (2015).

Foi via zoom que falámos com Sérgio Machado sobre este “Rio do Desejo”, premiado no certame Báltico pela direção de fotografia de Adrian Teijido.

Como nasceu a ideia de levar este “O Rio do Desejo” ao cinema?

Pensei nesse projeto quando estava a fazer outro filme cuja produção atrasou. Pedi a uma amiga minha, que é crítica literária, para ela me dizer quais os 10 livros mais interessantes, produzidos nos últimos anos. Ela disse-me e, quando cheguei no livro do Milton Hatoum, “Cidade Ilhada”, não tive dúvidas que era esse que queria adaptar. Eu já conhecia bem a obra do Milton, pois na época que fiz o meu primeiro filme, o “Cidade Baixa”, na altura do meu aniversário, o Walter Salles deu-me toda a obra dele. Enquanto viajava para lançar o filme, ia lendo esses livros e fiquei encantado. Tinha muita vontade de fazer algo dele.

Depois, sabia que queria adaptar o “Cidade Ilhada”, mas tinha dúvidas em qual dos contos me ia centrar. O que mais me agarrou aos contos e à obra do Milton é uma atmosfera de mistério, como se o destino das pessoas já tivesse sido resolvido pelos ancestrais. E há muita coisa omissa. Em cinema, o melhor é o que não é dito. 

Esse destino já traçado é curiosamente apresentado no filme através de um simbolismo poderoso dos pássaros, que diariamente fazem aquele percurso, aquela dança nos céus, sempre sem o questionar…

Sim, são gerações de pássaros que repetem aquilo durante a vida inteira. Esses pássaros não estavam no roteiro, mas quando fui ver as locações e morar lá, viver com as pessoas, descobri-os numa caminhada, que faz parte do meu método. Isto era na fronteira entre a Colômbia, Peru e Brasil. Perguntei às pessoas se havia algo bonito para ver na região e ninguém falou dos pássaros, pois era algo quotidiano. Eram umas cinco da manhã quando vi aqueles milhares de pássaros a voarem em redor de mim. É como um destino e repete-se sempre às 5 da manhã e 6 da tarde. Fiquei pensando como isso poderia entrar no filme.

Uma questão que se nota no seu cinema é um interesse nas relações familiares e a rivalidade entre irmãos. Isso já se via na série “Irmãos Freitas”…

E no “Cidade Baixa”…

É algo que o atrai?

É engraçado isso (risos). Uma amiga minha, cineasta, fez uma análise disso, daquilo que sigo sempre no meu cinema. Ela acha que isso tem a ver com o meu complexo de Édipo, qualquer coisa mal resolvida (risos). Curiosamente, nunca disputei nada parecido na vida com as minhas irmãs. Tenho duas irmãs mulheres. Mas esse tema da rivalidade entre irmãos é um assunto que sempre me atraiu. Não sei porquê (risos). 

Presentemente, estou a fazer uma animação com o Walter Salles, “A Arca de Noé”. É uma fábula com as poesias do Vinicius de Moraes. Tem um sentido político, pois tem um leão que é um ditador, que nem Bolsonaro (risos). Os animais pequenos – lombriga, barata, pulga, mosca, ratos – juntam-se para vencer o fascista, esse leão. É uma animação que estamos a fazer há dez anos, mas nela existem dois ratos que lutam pela atenção de uma rata (risos). Não sei porquê isso entra sempre no meu trabalho.

Esteticamente falando, uma das coisas que mais sobressai no seu filme é o trabalho da fotografia e do design de produção. É que nada parece estar ali por acaso, seja o telefone verde perante a parede amarelada, sejam outras coisas. Como foi a sua colaboração com o diretor de fotografia Adrian Teijido? 

Falei muito com o Adrian Teijido sobre o tema, pois tinha uma vontade de fugir da Amazónia deslumbrante. Queria um cenário quase opressor. Preparo-me para estas coisas de forma obsessiva. Escrevo algo durante anos, é o meu método. Escrevo uma coisa que chamamos de “livrão”: um espaço com notas do filme. Algo como 400/500 páginas com anotações. Coisas como a roupa, como ela deve contrastar com a parede, com a luz. Tento pensar em tudo.

Lembro-me que quando fiz o “Cidade Baixa”, o João Moreira Salles disse-me que era perigoso alguém se preparar tanto para fazer um filme, pois podes travar/bloquear. Por acaso, sinto exatamente o contrário. Quando me preparo, sinto-me livre para improvisar tudo. Quando já tenho algo sólido, deixo os atores improvisarem e os acasos acontecerem.  

Este filme foi feito durante os anos de Bolsonaro no poder, em que nós tínhamos de lutar contra tudo. Tudo o que esse governo poderia fazer para atrapalhar, fez.

O Rio do Desejo

E ao Bolsonaro, acrescente-se a pandemia. Isso complicou as coisas?

Sim, mas nós desenvolvemos um método de trabalho bem louco. Combinei com a equipa que, a cada semana, oito pessoas saíam da produção. Comecei com 50 pessoas e terminei com 8. As cenas mais complexas, fizemos no começo e as mais simples no final. Por exemplo, o diretor de arte saiu na segunda semana, pois não tínhamos como lhe pagar. O dinheiro que existia tinha sido conseguido ainda nos anos em que a Dilma estava no poder. Tivemos depois o azar de apanhar um governo completamente inimigo da cultura. Foi surreal o que aconteceu no Brasil. E é bom também ter filmado na Amazónia. Creio que as pessoas de outros países não têm a noção do perigo que estávamos a correr.  O que estava preparado para a Amazônia era um projeto de destruição o mais rápido possível, que depois iria acabar com o planeta. Quanto mais depressa aquilo fosse entregue ao garimpo e transformado num pasto, melhor para o Bolsonaro. Seria uma tragédia para o planeta inteiro. Ainda bem que ele se foi…

Mas o Bolsonaro ainda está aí. O perigo ainda não passou, ou acha que sim?

Sim, até porque foi uma vitória muito curta. Uma das preocupações que tenho no meu novo filme é o de alertar as pessoas do perigo que ainda estamos a correr. Se ele ganhasse mais quatro anos, seria uma tragédia. Ia acabar com a Amazónia durante esse tempo.

Já estamos a ver que o Trump está a preparar a candidatura e o Bolsonaro provavelmente também o fará. Este ciclo talvez ainda não tenha terminado…

Tenho esperança. Eu estava muito deprimido, mas acho que Lula vai fazer um bom governo e vai dificultar o seu regresso. Acho mais fácil o Trump voltar que o Bolsonaro.

Voltando um pouco à sua carreira, que passa pelo cinema e televisão, produção, escrita e realização, o que o movimenta? O que o faz ter interesse num projeto?

Adoro experimentar coisas diferentes. Fazer animação, documentários e ficções, mas fico com a sensação que nunca consigo fugir dos mesmos temas. Talvez neste se sinta menos, mas procuro sempre retratar um universo um pouco marginal. Mesmo no reino animal, como farei na animação, os animais que escolhi para serem heróis são atípicos: a mosca, a lombriga, a barata, os ratos. Esse universo dos mais fracos me atrai.

Tenho também a sensação que existe um denominador comum. Neste momento estou a fazer um documentário sobre o Jorge Amado e ele tem uma frase que explicita isso: “sem amor a vida não vale merda nenhuma”. A única coisa pela qual vale a pena viver é amar. Neste “O Rio do Desejo” existe uma ideia que penso ser central: podemos quebrar qualquer lei dos homens, mas a única que não conseguimos é a do desejo. Naquela cena em que o irmão mais velho magoa a sua mão, para lutar contra esse desejo, essa atitude se torna um cancro em torno do desejo, transformando a pulsão sexual, que para mim é sinónimo de vida, numa pulsão de morte. Na hora em que ele castra o desejo, nasce uma tragédia nele e nas demais vidas, entrando o grupo de irmãos numa espiral de destruição.

Por isso mesmo, vou fazendo filmes diferentes, para crianças ou adultos, mas acabam todos por falar das mesmas coisas. 

O Rio do Desejo

E nos seus filmes, existe igualmente um estudo da masculinidade…

Existe sim. É engraçado. Fico pensando que os realizadores que mais gosto são sempre desse universo: Kurosawa, John Ford, Howard Hawks. Existe sempre um universo masculino em análise.

A mulher é quem dá o caminho, a luz. É ela que abre sempre a janela e traz a luz. É como se o universo masculino fosse escuro, atrasado. Nos meus filmes, existe sempre uma mulher que anuncia o caminho. Só que os homens são sempre muito burros, não entendem essa mensagem e fazem merda (risos). 

Por exemplo, aqui, é a Anaíra é a única que usa o vermelho do desejo. E ela está sempre abrindo a janela para a luz entrar, mas eles preferem a escuridão estúpida masculina de querer lutar e guerrear. Nos meus filmes, os homens nunca entendem as lições que as mulheres dão.

Tem também uma ideia nos meus filmes que os oprimidos precisam se juntar, porque senão viram presas muito fáceis para quem é opressor. 

Em relação a essa animação que falou, é esse o próximo projeto a estrear?

Sim, tenho essa animação e uma série sobre a Maria Bonita, esposa de Lampião, Rainha do Cangaço. Eu sou fã de westerns e sempre tive vontade de fazer um. Vou sair de Talinn agora e vou direto para o Sertão. 

A animação está a desenvolver-se há 10 anos. Está pronta no ano que vem e está a ser trabalhada na Índia, no Brasil e nos EUA. É um projeto muito grande, talvez um dos maiores do Brasil. Neste momento, estão cerca de 280 indianos, brasileiros e norte-americanos a trabalhar nele. É muito ambicioso.

Tem alguma data de estreia prevista?

Em algum momento do meio de 2023.

Com essa data, o alvo é Annecy?

(risos) O nosso desejo é estrear em Annecy.

Tendo em conta que trabalha em cinema e televisão, o aparecimento das plataformas de streaming, não apenas a Netflix, mas até brasileiras, como a Globoplay, mudaram o seu trabalho até que ponto?

No caso do Brasil foi muito particular. Quando o Bolsonaro foi eleito, eu liguei para a minha ex-mulher e disse: “Olha, vou passar fome”. “No Brasil acabou“. Não teve nenhum filme financiado na era Bolsonaro. Curiosamente, na mesma época que entrou o Bolsonaro, surgiram os streamers e começaram a produzir muito. Não param de surgir séries e convites para elas, mas isso tornou o mercado muito desequilibrado. Nestes últimos quatro anos, só houve streaming, por isso não tens opção e acabas por fazer o que todo o mundo quer. Não é um modo livre de criar, com muitas pessoas a darem opinião.

Desde que esses streamers chegaram, ainda não filmei. Mas creio que agora, com o Lula, as coisas vão mudar. Vamos continuar a ter cinema e a relação com o streaming vai ficar mais equilibrada e saudável. Acho que vai melhorar.

Não sei se isso foi bom, haver um trabalho menos autoral e viver mais do que as pessoas dizem querer, pois não tinha outro jeito. Mas uma coisa é verdade: as propostas vão ficar muito parecidas. Por exemplo, no Brasil existem muitas séries, mas nenhuma delas virou um clássico como o “Cidade de Deus”, “Central do Brasil”, “Madame Satã” e “Deus e o Diabo na Terra”. Nenhuma série ainda chegou nesse lugar.

O Rio do Desejo

Pegando nessa deixa das propostas de cinema e streaming estarem a ficar todas iguais, tem se notado – especialmente no cinema americano, mas também europeu – o retirar do erotismo dos filmes e séries. O Rio do Desejo tem uma boa dose de erotismo.
Como é trabalhar hoje em dia nessas cenas, em tempos em que já existem conselheiros de intimidade, etc?

Ainda não filmei isso em nenhuma série, mas creio que no meu filme, o caso da Sophie Charlotte (Ainara), ela é casada com o Daniel Oliveira e fez uma cena de sexo com um outro ator, que é amigo. Tivemos uma conversa muito franca. Ela estava um pouco traumatizada, pois fez uma cena numa novela em que o diretor foi muito indelicado. O que lhe disse é que queria filmar essas cenas como as outras normais das pessoas a comerem ou a escovarem os dentes. Não queria fazer dessas cenas algo grande. E se ela achasse que teria uma cena pior, cortaria. Existiu uma relação de confiança com ela.

Na verdade, nunca tive nenhum problema com nenhuma atriz. Existe sempre muita confiança. Eu falei mesmo à Sophia que se um dia eu usar o erotismo como forma de prender o espectador, usar isso de uma forma comercial, prefiro abandonar o cinema e vender salsichas (risos). Fazer anúncios a salsichas, etc. 

Este filme é sobre paixão. Filmar o sexo de uma forma em que ele não aparece, parece-me tão pornográfico quanto o contrário. A ideia é colocar a câmara de forma normal. Acho que esconder a câmara, ou quando começa a cena de sexo, levares a câmara para o alto ou isso, é algo moralista e ruim. É tão errado colocar a câmara para explorar o erotismo como escondê-la. Por isso, prefiro sempre filmar essas cenas como qualquer outra.

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