Segunda-feira, 20 Maio

Ira Sachs: «Nunca faria um filme com a Isabelle Huppert em França»

Frankie, uma coprodução francesa/portuguesa, foi o nosso representante na Competição de Cannes. É uma declaração de amor de Ira Sachs à região de Sintra, um filme turístico que aproveita a sua essência para gerar um trabalho sob um constante olhar estrangeiro.

Mas nada se perde aqui, para além da habitual linguagem nova-iorquina e citadina do realizador. Sintra, por seu lado, mantém a sua beleza, a sua natureza e o peculiar misticismo que contagia personagens passageiras lideradas por Isabelle Huppert, Brendan Gleeson, Greg Kinnear, Jérémie Renier, Marisa Tomei e o português Carloto Cotta.

Até mesmo na sua abordagem, Frankie é “estrangeirado”; um americano que se aproxima à memória europeia, às réstias “rohmerianas” que compõem as férias de uma família privilegiada que encontra nesta serra a catarse para os seus assuntos pendentes, deixados na outra costa.

Sachs encontrou-se connosco no terraço da Unifrance, a poucos metros do Palais do Festival de Cannes, para falar sobre o filme, ainda fresco, recorrendo às suas memórias e à sua posição cinematográfica. Expressou a sua admiração por Huppert que, segundo o próprio, a par de Catherine Deneuve, é uma relíquia do cinema francês sem igual.

As romarias de um dos mais interessantes realizadores independentes norte-americanos em terras lusas e um elenco internacional de fazer inveja, Frankie é o seu mais arriscado desafio.

Porquê a escolha de Sintra para as filmagens?

Estava a viver em Portugal com a minha família já há uns 4 meses e meio e, durante muito tempo, pensei em fazer um filme sobre uma família. O meu coargumentista, Maurício Zacharias, brasileiro com “costela de português”, conhecia aqueles lados [Sintra]. Tudo isto acabou por desencadear uma memória minha. Estive de férias naquela zona quando tinha 14 anos, em 1979; com a minha mãe e as minhas duas irmãs. Lembro-me de ter um diário e todos aqueles elementos que caracterizam uma adolescência, ou seja, luxos. Eu e o Maurício permanecemos lá durante 10 dias e começamos a conhecer os cantos. Com essa viagem formou-se uma história que se enquadraria com aqueles cenários e as “coisas” que por lá vi.

Quanto a esta sua colaboração com Isabelle Hupert? Como a convenceu a entrar no seu filme? [risos]

Sempre a admirei e desejei desde sempre trabalhar com ela. A Isabelle Huppert é única, ela tem um tipo de desempenho que me interessava submeter aos meus filmes. Diria mesmo que é um tipo de desempenho europeu. Muito europeia, ela é. Já trabalhei com atores dinamarqueses, russos e até mesmo latino-americanos. Por norma, prefiro trabalhar com atores não-americanos, por diversas razões.

No caso da Isabelle, ela abordou-me depois de ter concluído Love is Strange e desde então falamos ao ponto de conhecê-la melhor e, por fim, decidimos trabalhar juntos. Tinha esta ideia de um filme sobre uma família em férias, possivelmente inspirado na obra de Satyajit Ray, Kanchenjungha, sobre uma família que passa férias nos Himalaias. Queria replicar esse efeito e, sobretudo, a sua estrutura narrativa, visto a intriga decorrer em apenas um dia. Era esse o meu maior motivo para trabalhar com a Isabelle. Nunca faria um filme com ela em França, não tenho as ferramentas necessárias para isso. Mas a Isabelle é uma espécie de espaço à parte, e isso funcionou comigo.

Nunca filmaria Huppert em França? Sente-se intimidado?

Não é uma questão de ficar intimidado, é uma questão de intimidade, é o que falta na minha relação com França. O que acontece em comparação com Portugal é que me sinto capaz de contar uma história aí. Obviamente que teria que ser sobre uma família estrangeira de férias, porque nunca iria fazer um filme em Portugal sobre a cultura portuguesa. Não teria essa capacidade.

Em Frankie, o filme, não conseguíamos diferenciar a personagem da atriz. Em certo ponto, há quase uma requisição do seu alter-ego, da imagem que temos dela na indústria.

Sim, julgo que da maneira que o filme está concebido, desde a sua abordagem até à mise-en-scène, o espectador está sempre ciente da personagem e do ator. E não é apenas o caso de Isabelle. Existe todo um trabalho de set e uma relação com a natureza que nos faz querer olhar para estas personagens / alter-egos.

Acima de tudo, os cortes não são devido aos ênfases, mas porque simplesmente as personagens movem-se por entre os espaços. Com isso digo que os atores apenas interpretam e essas personagens são algo nuas, de certa forma pouco trabalhadas porque estão presas à imagem que temos destes profissionais. É um ato muito europeu, próprio do que se fazia nos anos 70, que reflete sobre essas relações. É como, por exemplo, os filmes do Fassbinder: temos Maria Braun e Hanna Schygulla ao mesmo tempo, são a mesma figura diluída. Penso que este filme é sobre os prazeres da vida. Aliás, sobre a vida acima da morte. Sobre a beleza. Para mim, uma das belezas deste Mundo é a sua beleza teatral.

Frankie, mesmo apresentado os seus conflitos, é quase um filme rodeado de positivismo.

Não diria positivo, porque existem ainda conflitos nesta família. Os subenredos que utilizo, que são três principais: a ligação pai/filho, marido/mulher e as duas amigas que vêm desvendar uma espécie de “women buddies movie” levam-me a uma espécie de cruzamento de géneros. Todos aqueles enredos são guiados por teores diferentes um dos outros, e isso agrada-me. Não gosto de restringir-me a um só género, penso que o Cinema é mais que isso, assim como a Vida. Tem um pouco tragédia, como um pouco de comédia. Cada um tem a sua história e a sua experiência, e o facto de ser um filme de elenco é a representação de como encaro a Vida atualmente.

E a constante referência a Star Wars no filme? Provocação ou desejo?

Diga-me outro filme que seja mais identificável que Star Wars? Para a indústria é quase o pico, uma espécie de credibilidade reconhecida em Hollywood. É algo que estamos cientes, em qualquer lado e em qualquer momento poderá ser gravado um novo filme de Star Wars. Por isso, em termos simbólicos, é que citei esses filmes. Tentei criar um contraste de alguém inserido no universo arthouse, o criativo artístico cinematográfico que se vê na conceção de um filme desta franquia. É um conflito interno de reafirmação na indústria. Foi um elemento que joguei como cómico, um deleite.

Se lhe fosse proposto realizar um filme Star Wars ou outro de uma grande saga, aceitaria?

Não aceitaria … quer dizer, eles estariam a cometer um erro [risos]. Uns dos clientes do meu agente, realizadores independentes de Sundance, trabalharam para um daqueles filmes de super-heróis. Aquele com a Brie Larson?

Captain Marvel?

Isso. Mas eles são ainda novos [Anna Boden e Ryan Fleck]. Eu, por outro lado, tenho 53 anos e preciso do meu “final cut“. Por isso, não. Não faria um filme desses. Não a esta altura da minha vida. Prefiro fazer filmes a 4 mil dólares.

Não é só Star Wars que é menção, Nova Iorque é constantemente invocada por estas personagens e há pouco referia “morrer em Nova Iorque”. A “Big Apple” não o abandona, nem mesmo nos seus filmes?

O que Nova Iorque tem de mais maravilhoso é que já não é mais maravilhoso. Encontra-se marginalizada e igualmente globalizada. Enfrenta imensos problemas que hoje em dia várias cidades também enfrentam e visualmente já não possui o brilho de outrora. Já não nos agarra. Só que as pessoas continuam maravilhosas como sempre foram, desde que me mudei para lá em ’84. É uma cidade sonhadora, porque as pessoas instalaram-se pelos seus respetivos sonhos. Por isso é que neste filme, Nova Iorque é apresentada como uma fantasia, uma utopia.

 

Gostaria que me falasse daquele plano final. A forma como conseguiu captar o misticismo daquele lugar. Queria deixar uma nota à fotografia de Rui Poças…

Eu não sou uma pessoa ligada à mística, mas consigo experienciar o espanto, aquilo que denomino de “OH”. A vida é um “OH”, como também associo à escala, grandiosidade e ao mesmo tempo modéstia, e um lugar como Sintra. Aliás, aquele local do final inspira o meu senso de exposição. Sinto-me nu perante aquilo. Foi como se estivesse em Nova Iorque, a morrer à velocidade de um piscar de olhos. O “OH” é como fosse um Deus para mim, que me faz reconhecer a minha falta de importância.

E como conseguiu “coreografar” aquele momento?

Tinhamos um batedor que nos garantiu acesso aos mais remotos e belos locais da região. Por vezes é na rotina destes mesmos sítios que nos apercebemos o quanto podem e devem ser filmados. E eu estava à procura de uma localização final. Possivelmente, estive nesse local mais de 15 a 20 vezes. Porém, foi no dia em que filmávamos a cena final que ele recomendou que esperássemos para experienciar aquele efeito. Coisa de 20 minutos, para que o Sol interagisse com a água e o resto é aquilo que se vê no ecrã. Foi algo, aparentemente mágico, para ali, naquele exato local. Era mais que o normal, mais um dia.

Por acaso, não falava da manifestação natural em si ou da sua grandiosidade. Referiam-me à posição e movimento dos atores, que pareciam sincronizados com aquele por-do-sol.

Sim, mas foi tudo repentino, apenas experienciado no momento. Filmamos e esperamos que o Sol descesse e o resto foi saído à medida que o por-do-sol concretizasse. Comecei a minha carreira como encenador de teatro e naquele momento bloquieie-me quanto à direção dos atores; como iria colocá-los, como se movimentariam, quem e onde. Foi então que tudo começou a fazer sentido para mim; aquelas figuras encontraram os seus destinos, e moveram-se à luz do Sol como fossem uma animação. Tinha em mente as suas silhuetas, as sombras, nada mais. Poderiam ser bonecos ao invés de pessoas de carne e osso, poderiam ser, sei lá, o Rato Mickey. O que aconteceu foi que de um momento para o outro imaginei os movimentos de cada um e executei a cena. Assim, nasceu aquela cena.

Diga-me qual foi o momento que o motivou a seguir o Cinema?

Bem, diria que foi o divórcio dos meus pais. Naquela altura, nos anos 70, era comum o pai levar a criança ao cinema como forma de preencher o tempo perdido. Desde cedo criou-me uma intimidade com a Sétima Arte, até mesmo quando me mudei para Paris ia constantemente ao cinema, ver filmes franceses, alguns deles sem legendas em inglês. Lembro dos Truffauts que vi, no Sem Eira Nem Beira da Varda.

Falava há bocado do “final cut” e dessa liberdade. Como um realizador bem ativo, como resiste para preservar essa emancipação e ao mesmo prolificidade?

Foi difícil manter o ritmo, mas tudo se facilitou a partir de Deixa as Luzes Acessas. Ou seja, tinha um projeto antes, em 2009, para o qual não consegui financiamento, nem mesmo na indústria independente, e como tal comecei a imaginar formas independentes de conseguir financiar os meus filmes. Comecei a angariar o meu próprio dinheiro, não havia produtor algum que fizesse isso por mim. Atualmente, afirmo que sou uma espécie de Cassavetes ou Shirley Clark quanto aos métodos de produção independente em relação à economia tradicional.

E está a funcionar esse método?

Sim, de momento está a funcionar.

Pensa voltar ao teatro?

Não penso fazer mais teatro, porém, ando com uma ideia e quero avançar num musical do Love is Strange. Atenção, quero lançar a ideia, mas não  me quero comprometer a ser o encenador ou o guionista.

Espera uma produção digna da Broadway? [risos]

Quem sabe. Poderia ser um musical integral dirigido pelo mesmo encenador de Rent. Já estou a imaginar. [risos]

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