Sexta-feira, 3 Maio

De Pasolini a Eugène Green: O espírito apesar de tudo (III)

8) REALFABETIZAÇÃO DAS IMAGENS E DOS SIGNOS.

 NAS IMAGENS: Le Monde Vivant, Eugène Green, 2003

NAS IMAGENS: En Attendant les Barbares, Eugène Green, 2017

”O mundo, a verdade e a experiência são coisas complexas, que a ficção tem a possibilidade de exprimir. Uma coisa e o seu contrário podem ser simultaneamente verdadeiras, consoante o ângulo pelo qual sejam observadas.” Eugène Green

Questionando o estabelecido, há a contínua missão de relevar a subjectividade. E porque um signo pode ter várias leituras, o Cavaleiro que protagoniza Le Monde Vivant tem um cão a que chama leão e estas crianças têm um coelho a que chamam elefante. Uma infantilidade elementar subjaz: a verdade deduz-se da crença, no perpetuum mobile que é o mundo vivo.

”Todas as militantes comunidades, todas as terríveis comunidades, sobreviveram à sua própria extinção desta forma. Não há esperança senão no movimento, no movimento mesmo que subtil, no movimento mesmo que imperceptível, no movimento que segue a sua propensão de aumentar o poder.” Barth David Schwartz

 

9) UM FUNDO DE COMÉDIA.

NA IMAGEM: Eugène Green em Le Fils de Joseph, Eugène Green, 2016

NA IMAGEM: Eugène Green em La Sapienza, Eugène Green, 2014

NA IMAGEM: Eugène Green em A Religiosa Portuguesa, Eugène Green, 2009

NAS IMAGENS: Pier-Paolo Pasolini em The Canterbury Tales, Pasolini, 1972

Há um subtexto irónico que perpassa a obra de Eugène Green e que a despe dos fatos pretos do academismo. Surgindo recorrentemente nos seus filmes, parece propositado que a sua auto-representação desafie a cristalização da sua imagem como um intelectual. Surgindo, em público, elevado pelo discurso eloquente e pelo vocabulário sofisticado, nas suas aparições opta pela desconstrução da figura, protagonizando o cruzamento entre classes e registos de linguagem que caracteriza o seu cinema. Tanto Green como Pasolini surgiram nos seus filmes e, pelo cinema, deram visibilidade ao seu próprio processo (apresentando o meta-filme como um instrumento de estudo). Em La Ricotta, Pasolini inscreveria, não apenas uma crítica ao catolicismo romano, como à hierarquia que está na base do fazer cinema. Eugène Green prossegue pela mesma via auto-irónica, surgindo na pele do pouco católico realizador d’A Religiosa Portuguesa no seu filme homónimo.

NA IMAGEM: Pier-Paolo Pasolini em Requiescant, western de Carlo Lizzani, 1967

 

10) ONDE ESTÁ O BARROCO?

NA IMAGEM: Uma espécie de docu-ficção serve de preâmbulo a En Attendant Les Barbares, Eugène Green, 2017

”Em relação à direcção de actores, eu peço-lhes que falem como se estivessem falando a si mesmo, evitando efeitos retóricos, que não são só demasiado intelectuais como cortam o fluxo do sentimento de verdade. Pela mesma razão, peço-lhes que não façam gestos supérfluos: toda a energia interior deve passar pelo rosto ou por movimentos precisos.” Eugène Green

Como estilo, o barroco tem a particularidade de balizar vagamente um período artístico e cultural da Alta Idade Média, mas também de ser um atributivo caracterizador. La Sapienza foi o grupo de teatro em que Eugène Green mais pesquisou, procurando reencontrar, com os actores, uma versão contemporânea de teatro barroco. Estudos sobre a fonética e a dicção que procuram a pronunciação da época, a recitação que não envolve o investimento emocional do actor sobre as palavras, uma corporalidade rígida e em precisa relação com o espaço e uma concentração do corpo na particularidade do gesto correspondem-se com a extravagância do texto e a inverosimilhança das situações entoadas.

Green assume que, para si, teatro e cinema são dois movimentos opostos (se a arte teatral implica exterioridade, no cinema a sua pesquisa é por interioridade) e é a si próprio que responde com uma tentativa de depuração. O contraponto é visível: o minimalismo está inscrito não apenas na direcção de actores, como nos cenários, figurinos e composição da imagem. Esta inconfundível estilização encontra-se, desde logo, no seu primeiro filme Toutes Les Nuits (2001), realizado quando Eugène Green completava 54 anos.

Em Le Monde Vivant, tudo existe em representação de -. Sem uma descrição espácio-temporal precisa, este é e não é um filme de época. Ao bom jeito barroco, Le Monde Vivant preserva o ritmo e o projecto de entretenimento, culminante em final feliz. Por outro lado, como reinterpretação do estilo de romance de cavalaria (modelo literário associado ao trovadorismo), Le Monde Vivant acontece como uma narrativa fantástica que, dividida por capítulos, descreve as façanhas heróicas de dois cavaleiros num território irreal, controlado por um maléfico ogre que aprisionou uma donzela em perigo. Ideais místicos, amor platónico e incansáveis demandas, cruzam-se com elementos da ritualidade cristã e desenvolvem-se em cenário medieval.

 

11) MISTICISMO CRISTÃO EM TRAÇO LIVRE

NA IMAGEM: O Evangelho Segundo S. Mateus, Pasolini, 1964

NAS IMAGENS: Teorema, Pasolini, 1968

NA IMAGEM: Toutes Les Nuits, Eugène Green, 2001

NA IMAGEM: Mamma Roma, Pasolini, 1962

Também chamado de Arte da Contra-reforma, o Barroco integra o movimento anti-luterano, respondendo à crise de fé que inquietava a Igreja quando Martinho Lutero foi herege por pôr em causa uma parte dos cânones católicos. A mensagem de Concílio de Trento designava um investimento na interpelação sensorial através do desenho do espaço sagrado. As Igrejas vestiram-se de talha dourada, ornamentos, altares e retábulos, povoando-se de estátuas e frescos de anjos e santos. Os mesmos preceitos sedutores estendiam-se à representação teatral que, ”modelo para todas as outras artes do Barroco’‘, afirma Green, era dominada pelo excesso e pela tentativa de impressionar quem assistia.

“(…) e assim nasceu esse magma estilístico que é próprio do ‘cinema de poesia’. Porque, para poder contar o Evangelho, tive de emergir na alma de um crente. Nisto consiste o discurso livre indireto: por um lado, a história é vista através dos meus olhos; por outro, é vista pelos olhos de um crente. É o uso deste discurso indireto livre que causa a contaminação estilística, o magma em questão.” Pasolini

NA IMAGEM: Le Monde Vivant, Eugène Green, 2003

NA IMAGEM: Teorema, Pasolini, 1968

NA IMAGEM: Como Fernando Pessoa Salvou Portugal, Eugène Green, 2018

NA IMAGEM: Porcile, Pasolini, 1969

”O Deus escondido não se manifestava senão em momentos excepcionais. E o homem barroco acreditava que podia produzir esta suspensão das leis da natureza através da arte, nomeadamente através do teatro, que era a mais forte das artes.” Eugène Green

É pela força mágica do amor que, contra todas as expectativas, o Cavaleiro de São Leão volta à vida em Le Monde Vivant. Quando as leis da natureza se suspendem, há condições para o milagre e o Cavaleiro – com grandeza messiânica – regressa da morte.

Tal como Pasolini, Eugène Green volta ao mito messiânico do retorno, tão central aos catolicismos mediterrânicos como às ideologias particulares em que os seus imperialismos se fundaram, ao longo dos séculos. Em Portugal, o mito do V Império, protagonizado pelo Encoberto, traduz-se na profética fixada nas Trovas pelo poeta Bandarra (1500-1556), completada pela lírica camoniana (1524-1580) e reinterpretada pelo Padre António Vieira (1608-1697). Inscrevem a crença messiânica de um salvador por regressar num dia de bruma que, no caso português, será Dom Sebastião, o rei perdido em Alcácer-Quibir, que protagonizará a salvação evocada n’A Mensagem de Fernando Pessoa (1888-1935); obra que, em pleno salazarismo, previa o cumprimento futuro de Portugal enquanto pátria espiritual. Para se não duvidar do posicionamento do autor, recorde-se como Fernando Pessoa escrevia à época que esse império português haveria ainda de chegar em tempo indeterminado, o que o distinguia dos que achavam que já se tinha cumprido, com a expansão ultramarina.

Ao realizar a comédia Como Fernando Pessoa Salvou Portugal, Eugène Green propõe que Pessoa era, na sua improvável desmultiplicação, já o prometido Encoberto, assim quebrando a portuguesíssima espera. Voltará à questão messiânica outras vezes: em Toutes Les Nuits (2001), uma mulher espera por um homem mas é uma figura crística, com as chagas que o comprovam, quem inesperadamente surge em sua casa; em Les Signes (2006), uma mãe espera com os seus filhos sinais de um marido que nunca mais regressou do mar. Como um farol que mantém acesa a esperança, o símbolo da sua crença é uma vela deixada a arder. O título Le Fils de Joseph deduz mais uma analogia à narrativa bíblica, transposta para a história de um jovem sem pai que é ‘adoptado’ por um pai simbólico.

NA IMAGEM: Le Fils de Joseph, Eugène Green, 2016

Em Teorema (Pasolini, 1968), a atribuição de características improváveis a uma figura com contornos crísticos é o grande projecto de remodelação iconográfica que se sucede ao Evangelho Segundo São Mateus (Pasolini, 1964). Visitante num palacete urbano da burguesia endinheirada, este messias inspira radicalmente quem quer que toque, sendo sexual a via para a conversão espiritual. Se aqui a destruição da burguesia acontece indivíduo a indivíduo, o assumido marxismo de Pasolini reformularia a iconografia cristã preservando, para lá da crítica social, algo como um sopro de indefinível espiritualidade.

”Apenas um sistema fez a diferença: foi o consumismo. Conseguiu mudar a psicologia da classe dominante. É o único sistema que tocou no fundo, conferindo uma estamina agressiva, necessária ao indivíduo na sociedade de consumo. (…) Ele tem de lutar para elevar o seu status social!” Pasolini

”A precisa e sombria crítica de Pasolini [em Petrolio] à sociedade de consumo (…), não só investe na construção de uma fenda e de um protagonista esquizofrénico como parece profética na sua descrição de uma sociedade esvaziada de valores em prol do alcance de satisfação material.” Deborah Amberson (in Streching the Standard)

NA IMAGEM: La Ricotta, Pasolini, 1962 (integrou o omnibus RoGoPaG)

NA IMAGEM: O Evangelho Segundo S. Mateus, Pasolini, 1964

NA IMAGEM: Deposizione, Pontormo, 1526-1528

NA IMAGEM: Deposizione dalla croce, Rosso Fiorentino, 1521

Nas suas dramáticas poses, evocativas de grandes mestres da Renascença como Pontormo ou Fiorentino, os figurantes de La Ricotta (Pasolini, 1962) suspendem uma coreografia tão elaborada quanto desvitalizada da Paixão de Cristo. Considerada como uma blasfema figuração de Cristo, que valeu a Pasolini uma condenação à prisão (de que se escapou ao pagar a fiança), este aceitaria o convite do Papa João XXIII para renovar o diálogo com a Igreja Católica, a despeito da sua reputação pública de ateísta, homossexual e marxista. Em 1964, a interpretação pasoliniana d’O Evangelho Segundo São Mateus vinha dedicada ao Papa e trazia consigo uma inesperada veneração, que Pasolini veria premiada pelo Grande Prémio de Cinema Católico, atribuído pelo Vaticano.

“Além de um método de reconstrução por analogia, encontramos a ideia do mito e do épico (…) por isso, ao narrar a história de Cristo, não reconstruí Cristo como ele efectivamente era. Se o tivesse feito, não teria feito um filme religioso, uma vez que não sou crente. Não acredito que Cristo fosse o filho de Deus. Teria feito uma reconstrução positivista ou marxista se tanto, ou, no melhor dos casos, a narração da vida de um dos seiscentos santos a pregar, neste momento, na Palestina. No entanto, não queria isso. Não estou interessado em profanações. É um estilo que eu desprezo, é pequeno-burguês. Quero voltar a consagrar as coisas, porque isso é possível. Quero re-mitificá-las. Não queria reconstruir a vida de Cristo consoante era, queria contar a história de Cristo dois mil anos depois, uma vez que foram esses dois mil anos que mitificaram a sua biografia. Este é o meu filme: a vida de Cristo dois mil anos depois da vida de Cristo.” Pasolini

Depurado e minimal, o Evangelho de Pasolini descreve o dia-a-dia de um Cristo com medida humana, amiúde capaz de milagres. Mas Pasolini viria a arrepender-se de filmar milagres, assumindo considerar a sua opção ”de um pietismo nojento, uma atitude digna da contra-reforma barroca”. Posteriormente, utilizaria a iconografia cristã como base para outras remodelações, afundando a mélange entre a figuração religiosa e a presença do explícito erótico nos seus filmes e aguçando a crítica política. Depois de uma crise de confiança no cinema como veículo para as suas convicções marxistas, buscará estreitar a sua relação com o grande público. Mudará de estratégia com A Trilogia da Vida:

”Esta lógica chega do desespero face à impotência política de ter uma audiência que estava limitada a facções dominantes da burguesia (artistas e intelectuais). Também sai do seu desapontamento com a estética de anarquia proposta pelo ‘cinema de poesia‘, que haveria de ser apropriada prontamente como cânone pelo mundo internacional do cinema, da mesma forma que a postura marxista se tornou tendência para a juventude da Europa. Pasolini e o seu produtor, Alberto Grimaldi, evadiram as políticas marginais, alternativas e contra-culturais e tentaram conceber e comercializar a Trilogia da Vida (Os Contos de Canterbury + Decameron + Mil e Uma Noites) como um espectáculo para massas.” Gabriel Abrantes

NA IMAGEM: Il Decameron, Pasolini, 1971

 

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