Sexta-feira, 3 Maio

De Pasolini a Eugène Green: O espírito apesar de tudo (II)

4) UMA CULTURA É UMA PRÁTICA.

NA IMAGEM: The Canterbury Tales, Pasolini, 1972

”A cultura média é sempre corrupta.” Pasolini

Assumindo a sua identificação com a cultura europeia, Eugène Green despreza os EUA em que nasceu e o inglês de que é nativo e que hoje apelida de língua dos bárbaros, respondendo à emergente americanização do mundo. Green fala um francês sofisticado, pontuado por palavras arcaicas e prefere a cultura dos países mediterrânicos, onde filma: França, Espanha, Itália ou Portugal. Esta aquisição de uma cultura de referência em resposta a uma cultura de pertença, própria a um meio com que não se identifica, plasma uma postura activa que é emblema do seu próprio cinema: em permanente resgate de traços e vestígios de uma expressão do passado, este é um cinema insatisfeito com o estado do mundo que propõe planos de cruzamento entre elementos actuais e extemporâneos. Guia-o a sua inspiração e, daí, sai um muito próprio estilo de remix.

Tal como Bresson, Green trata o cinema como um dispositivo, chamando-lhe cinematógrafo e investindo na sua reinvenção. Os planos participam numa gramática apurada de gestos e signos que regressam. Esta reinterpretação de influências distingue-se, de formas várias, neste Le Monde Vivant. A nível linguístico, o cruzamento de registos de linguagem é aqui uma constante e parece participar numa grande e silenciosa projecção revolucionária que dignifica, colocando ao mesmo nível, os vários extractos etários ou sócio-económicos dos que se exprimem. Recordamos Pasolini que, assumindo preferir as pessoas simples e de baixa instrução, resgatou e inscreveu – tanto na prosa como no cinema – os dialectos tradicionais, usados em subúrbios, comunidades rurais ou piscatórias ou regiões remotas do território italiano. Além do sentido antropológico deste resgate, sublinha-se uma intenção social, própria à sua formação marxista, de abolir as fronteiras entre alta e baixa cultura.

”Os escritos e filmes de Pasolini, uma das mais complexas figuras literárias do seu tempo, produziram resultados inovadores, a nível da análise da linguagem (incluindo dialectos marginais), uso simbólico (semiótica) e o revivalismo de mais antigas formas de poesia (Verso Alexandrino), assim como de certas técnicas cinematográficas particulares.” Joseph D. Falvo

Eugène Green sabe, tal como Pasolini, que lutar contra a padronização cultural é lutar contra o poder vigente. Este cruzar das mais populares formas de expressão cultural com as mais eruditas formas de cultura, constrói um projecto de nivelamento que implode as fronteiras entre classes. Deste modo, se Green ou Pasolini eram estilistas, jamais podem ser considerados académicos: permanentemente estimulando a reinvenção do estabelecido, a sua discliplina é, simultaneamente, anti-disciplinária.

‘(…) assim como com o Fruliano, esta nostalgia continha sempre componentes linguísticos e ideológicos: a nostalgia que ele sentia por dialectos e civilizações antigas era o reverso da crise cultural e linguística que ele sentia na sua própria civilização.” Naomi Greene (in Pier Paolo Pasolini: Cinema as Heresy)

 

5) O PENSAMENTO VIVE FORA DOS MUROS

NA IMAGEM: Le Pont des Arts, Eugène Green, 2004
NA IMAGEM: As 1001 Noites, Pasolini, 1974

Conhecer é criar possibilidades, ampliando o escopo de um progressivo projecto de libertação em nome próprio, saindo do meio que foi imposto pela proveniência. Relacionando-se e estudando em profundidade culturas e línguas que são mais antigas do que o país que o viu nascer, Eugène Green sabe que não há grau zero da cultura. Pelo contrário: tudo é referencial, tudo é uma reinterpretação, capaz de gerar outras formas. Como evolui uma língua?

Em progressiva interrogação do status quo, também Pasolini sabia que as normativas da linguagem vão além das questões do estilo ou do cânone literário, participando num projecto alargado de padronização. É assim que, como escritor, resgata dialectos e arcaísmos, advogando uma expressão subjectiva da linguagem, como veículo de um ponto-de-vista político contra a normativização da nova Itália pós-fascista, aberta à industrialização e à sociedade de consumo (e que tão expressivamente desfigura em Porcile ou Teorema).

A cada um destes processos de pensamento, assinados por Green ou por Pasolini, subjaz a mesma intenção de participar criticamente no seu tempo, estudando vias alternativas. Ao criar objectos que integram e participam no espaço público – como romances, ensaios, peças ou filmes – cada um dos autores age fora dos altos muros da academia (não deixando de acrescentar às disciplinas da filologia, da linguística, da semântica ou da filosofia). Aqui argumenta-se a necessidade de uma arte interventiva, capaz de estreitar a relação directa entre criação artística e experiência humana.

”Será que a realidade do borgate e as vidas dos camponeses realmente existiam consoante Pasolini as descreveu, ou tratava-se somente de uma forte projecção da sua nostalgia e anseios pessoais? Será que as rurais e pastorais virtudes existiam de facto como as retratou ou têm mais a ver com os traços religiosos da sua poética, do que com uma observação sociológica precisa?” Patrick McCarthy (in Forza Italia: The new politics and old values of a changing Italy)

 

6) EU ESCOLHO OS MEUS COMBATES.

NA IMAGEM: Saló ou os 120 dias de Sodoma, Pasolini, 1975

Em Le Monde Vivant, os Cavaleiros são auto-proclamados. Do anúncio do cargo, espera-se o seu desempenho e, assim, estes Cavaleiros irão vencer ogres, libertar donzelas fechadas em torres e viver romances de amor platónico com cortesãs. Esta espécie de agenciamento activo parece traçar o esboço para uma mais alargada atitude de relação com o mundo.

Eu sou algo porque me digo algo. A qualidade interventiva desta postura é uma chamada à acção e diz tanto sobre representação como sobre a consciência do papel social como base da construção da sociedade. É também, por conseguinte, um instrumento para a sua desconstrução. Entre o ser e a sua acção no mundo, existe uma hipótese de contrapoder, nascida da capacidade de fender o que é sistematicamente de si esperado. Escolher agir disruptivamente contra o ”sistema”: eis uma prova nítida do que avança para fora dos mínimos culturais que a todos são igualmente administrados no interior desse mesmo ”sistema”.

NA IMAGEM: La Sapienza, Eugène Green, 2014
NA IMAGEM: Porcile, Pasolini, 1969

 

7) A PALAVRA ENCHE E ESVAZIA.

NA IMAGEM: Le Monde Vivant, Eugène Green, 2003

”Envolvido por uma luminosidade que mergulha nas trevas, Saul nunca viu Cristo, mas escutou a sua voz. O verbo é a palavra na sua concepção mais activa, mais criativa: nascente do mundo, elemento mágico que, de um animal bípide, faz um homem, espaço onde a nossa espécie reencontrou o sagrado, ligação que une os homens entre si. Mas hoje, a palavra, envolta em trevas, está escondida. O cinematógrafo, construído a partir de fragmentos desse mesmo mundo, torna a palavra visível, restitui-a à Humanidade. O cinema é a palavra feita imagem.” Eugène Green

Se estudar a relação entre Signo e Significação é estudar o fenómeno da comunicação e da partilha comunitária de uma identidade, fender estas relações de correspondência é recriar o dicionário. Sob uma aparência de imediata leveza, apreensível pelos mais diversos públicos, este filme tem uma sofisticação de tratado semiótico, que aborda tanto a representação linguística da realidade, quanto a possibilidade de que esta realidade possa ser refeita pela modificação das suas mais fixas estruturas. Interessado pela aprendizagem de línguas, pela reutilização de arcaísmos ou pelo estudo da origem das palavras, Green conhece a linguagem como um fenómeno progressivo, dependente da experiência humana. Se uma língua existe ao ser falada, mudar o contexto da experiência (recolocando-a num cenário acima de qualquer lugar ou realidade mapeável, como acontece em Le Monde Vivant) é também poder remodelar a língua, vivificando-a. É também aqui que age a desafectação procurada pela representação: para Green, o actor não interpreta o texto, apenas lhe empresta o fôlego. É a sua intervenção humana que relaciona esse texto com a sua experiência.

A validade do contrato oral entre humanos (pais e filhos, mulheres e maridos, donzelas e cavaleiros) é um dos grandes temas deste filme. No centro deste estudo, estão expressões como ”dei a minha palavra” ou ”eu prometi”, repetidas pelos vários personagens e reveladoras da vitalidade do vínculo oral entre os humanos. Unir compromisso a palavra: eis o projecto, esboçado em fundo anárquico. Sem documento escrito, sem juíz, notário, autoridade ou qualquer terceira parte envolvida, estas palavras fixam-se ao serem ditas, na troca directa entre estes dois humanos que aqui comunicam e que, numa ode à lei do homem, entre si principiam assim uma ideia basilar de civilização. É também uma evocação da cultura de transmissão oral que perpetuou os feitos narrados pelos romances medievais, isolando, no imaginário popular, elementos distintivos que ainda hoje associamos à ficção medieval (princesas, dragões, cavaleiros, reinos encantados, bruxas, etc).

”Tudo o que existe no mundo, tudo o que é humano e mesmo a compreensão humana do mundo, são ambivalentes, são um oxímoro, tal como a civilização barroca. Desde o Século XVIII, vivemos numa ditadura da razão que não existe senão na sua própria construção.” Eugène Green

 

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