Terça-feira, 19 Março

“Tantas Almas”: radiografia da desigualdade colombiana à luz das Fontainhas de Pedro Costa

Neste sábado, o Festival de Marrakech chega ao fim, com a entrega dos prémios pelo júri presidido por Tilda Swinton.

Com a cabeça agarrada à Austrália da estreante Shannon Muprhy e o seu Babyteeth, o mais festejado dos filmes em competição que exibido desde a sua abertura, na sexta, o 18º Festival de Marraquexe pediu licença ao deslumbramento que teve com o Novíssimo Mundo a fim de embarcar numa devastadora jornada pela América Latina, a partir da Colômbia. Dor é o sentimento que pavimenta a estrada por onde José, um pai em busca do corpo dos seus filhos mortos, percorre em Tantas Almas, um rigoroso exercício de realização exibido na luta pela Estrela de Ouro de 2019.

Nicolás Rincón Gille, que tem um currículo pautado pela estética documental, estreia-se na ficção numa coprodução com o Brasil, França e Bélgica sobre os desajustes políticos do governo colombiano e o peso sobre os seus habitantes. O pescador Arley de Jésus experimenta um devir ator no papel de José e a sua jornada por pedaços da sua essência. No ecrã, a referência à estética de Pedro Costa e ao seu No quarto de Vanda (2000) é uma Estrela de Belém a guiar as pesquisas narrativas do realizador sul-americano nas veredas do Real.

Pedro Costa deu voz àqueles que a sociologia e o Estado entendem como “invisíveis”. O que fica de referência prática dele em seu dispositivo narrativo aplicado a Tantas almas?

Costa mostrou-me como a estética pode (e deve) estar ligada à ética… uma ética política, de equipas pequenas, procurando experiências sensíveis e reais. Você jamais vai acreditar que José, a minha personagem, entrou num rio e nadou se Arley não o fizer. Eu tenho aqui um ator não profissional. Um pescador evangélico, com quem  tive de lidar de maneira cuidadosa em relação a questões que poderiam ferir a sua prática religiosa: como fumar, beber ou cantar músicas que não são de seu credo. Mas ele refletiu, aceitou e embarcou num esforço de traduzir a experiência da realidade em imagens.

O quanto da sua trajetória documental constrói as bases desse tráfego pela ficção?

Na relação do cinema com o Real, tenho a sensação de que o documentário sempre chega depois aos acontecimentos, não por um atraso, mas pelo facto de que o registo documental não é algo que antecipa os favtos e, sim, um testemunho. E nessa forma de testemunhar, existe a necessidade de um distanciamento em que se filtra o afeto. Meu esforço aqui era, justamente, abrir-me para um trajeto afetivo.

A sua narrativa passa-se em 2002. Onde foi o local em que filmaram e como foi redesenhar a forma do passado naquele espaço?

Filmamos em Simití, que fica a oito horas de Cartagena, num trajeto de carro e de barco. A nossa diretora de arte veio do Brasil, Laís Melo,  e ajudou muito a fazer um processo que fosse de conservação da memória que já estava impresso naquele espaço e não de reconstrução.

 

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