Sexta-feira, 26 Abril

Santiago, Itália: o gesto político de Nanni Moretti contra a imparcialidade

Santiago, Itália terá estreia comercial em sala a 11 de setembro de 2019

Hoje, como antes, não podemos ser imparciais. Eu nunca aceitei a ideia de que a imparcialidade, o facto de se fingir ser uma terceira parte, fosse um valor.

Estas palavras de Nanni Moretti, enquadradas numa entrevista executada por Mario Calabresi para a revista ilVenerdi (suplemento do jornal La Repubblica), a propósito de Santiago, Itália, o seu novo documentário, explicam bem a sua natureza e personalidade. Ele próprio o admite, perante um militar encarcerado por homicídio e rapto nos tempos da ditadura de Augusto Pinochet: “Não sou imparcial“.

Também não é segredo para ninguém a militância de esquerda que caracteriza o autor, “um dos mais importantes na Europa“, segundo José Manuel Costa, diretor da Cinemateca Portuguesa, que acompanhado por Stefano Savio (Associação Il Sorpasso) e Pedro Borges (Midas Filmes), apresentou o filme numa sessão quase esgotada neste dia 0 da Festa do Cinema Italiano. Os atuais embaixadores de Itália e França marcaram presença na sessão que inaugurou a extensa retrospetiva ao cineasta que a Festa do Cinema Italiano organiza. Paulo Portas, entre outras figuras mediáticas, também passou pela sala Félix Ribeiro.

Nota-se que Moretti quis fugir ao cinema militante clássico neste seu Santiago, Itália, dando até tempo de antena “aos bandidos“, dois militares com posições, visões e experiências diferentes sobre as razões do golpe militar que levou à queda do regime democraticamente eleito de Salvador Allende, num outro célebre 11 de setembro, em 1973.

Queria entender humanamente como eles justificariam as atrocidades“, disse Moretti ao ilVenerdi, mas a verdade é que essa falta de imparcialidade nota-se nas entrevistas que faz aos dois militares. Não é só o tom e entoação das questões que revelam desconforto e impaciência, mas igualmente a montagem, com cortes abruptos e quase toscos como quem quer limitar ao mínimo a presença destes homens por aqui. Um deles foi um soldado a vida toda e não foi acusado de nada, o outro foi condenado por homicídio e sequestro, e está a cumprir a sua sentença. Eles dizem coisas opostas. Aquele que está na prisão diz: “obedecemos às ordens”; o outro sustenta que “não houve ordem para as torturas por parte da junta militar” e alega que o golpe de Estado serviu para “restaurar a democracia”, explicou Moretti na mesma entrevista.

A História não se repete…

O que levou o cineasta a abordar o golpe militar chileno e o papel da embaixada de Itália, tantos anos depois? O realizador explicou ao ilVenerdi que foram muitos os que o questionaram sobre isso durante as rodagens e que nunca soube responder. Porém, e após concluir os trabalhos, Matteo Salvini tornou-se Vice Primeiro-Ministro e Ministro do Interior em Itália, percebendo (finalmente) Moretti porque fez este filme.

A verdade é que nestes 80 minutos conta-se a história de como a Itália e a sua embaixada serviram como uma “Arca de Noé” para os dissidentes políticos que fugiam ao regime de Pinochet. Essa Itália, recebeu de mãos abertas os refugiados, integrando-os com um grande sentido de humanismo, o que contrasta com as ideias políticas defendidas pelo atual governo, onde se destaca a figura de extrema direita populista Matteo Salvini.

Mas ainda antes deste chegar ao poder, a ideia do documentário começava a ganhar forma na primavera de 2017, quando Moretti esteve em Santiago do Chile numa conferência e o embaixador italiano falou-lhe de dois jovens diplomatas que decidiram dar guarida a dissidentes políticos do regime de Salvador Allende. Para Moretti, esses dois homens – Piero de Masi e Roberto Toscano – foram um “exemplo de como os indivíduos podem fazer a diferença” na sociedade, especialmente tratando-se de duas pessoas da sua geração, da sua juventude.

Foi para nós uma experiência muito dura, especialmente do ponto de vista humano, o acolher dos asilados, os quase 600 chilenos que se refugiaram na embaixada de Itália. O asilo diplomático não é previsto pelo direito internacional, mas na América Latina, é reconhecido, e nesta ocasião a Itália e outros países puderam exercê-lo“, explicou Toscano ao La Repubblica em novembro de 2018.

Nos tempos que se seguiram ao golpe, o próprio Moretti participou em protestos no seu país contra o regime de Pinochet, principalmente porque a esquerda tinha tomado consciência que aquele era o fim de um sonho: “A esquerda tinha ido para o governo pela primeira vez através de eleições livres e não pelas armas. Havia uma diferença enorme com outras experiências socialistas, era uma experimentação alegre e democrática, e procurávamos uma solução original que não estivesse próxima da experiência soviética ou chinesa, nem tampouco a cubana. (…) não falei com especialistas ou historiadores, mas pessoas que viveram e sentiram na pele essa História. Os que estavam lá. Nas suas vozes, percebemos o sofrimento daqueles dias, o seu medo.

São muitas as vozes que o italiano reúne em 80 minutos documentais que recorrem muitas vezes a imagens de arquivo. De jornalistas aos diplomatas, passando por muitas outras profissões, onde não faltam realizadores, Moretti recolhe depoimentos que vão desde a alegria dos tempos de vitória de Allende, aos momentos de pavor, tortura e morte que se seguiram ao golpe militar.

O cineasta Miguel Littín é um desses testemunhos, não tendo dúvidas que Allende foi assassinado, ao contrário de outros, que colocam a hipótese de ter cometido suicídio.

Littín é, aliás, um dos cineastas chilenos mais ativos a contar esse período negro da história do seu país, tendo assinado obras como Dawson – Isla 10, que aborda o encarceramento numa ilha remota dos mais próximos do regime de Salvador Allende, ou Allende en su Laberinto, sobre o golpe e a transformação do Palácio de La Moneda no último reduto da democracia chilena.

Mais simetrias entre Itália e o Chile

Para Moretti, o Chile está dividido em dois blocos e cultiva duas memórias opostas. “Há pessoas que, no dia 11 de setembro, no aniversário do golpe, colocam a bandeira na varanda para celebrá-lo. É como em Itália, onde há 25 anos havia uma memória comum de antifascismo e resistência. Perdemos isso nos anos de Berlusconi e, desde então, não há herança de valores compartilhados entre progressistas e conservadores. Isso preocupa-me porque, é claro, podemos nos dividir em escolhas políticas, mas não nos valores fundamentais.

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