Terça-feira, 19 Março

O fenómeno «The Wandering Earth»: quando são os chineses a salvar o mundo

O cinema de Hollywood sempre nos deu inúmeras obras onde o mundo em perigo era salvo pelos americanos, às vezes com ajuda dos restantes países, mas sempre num papel secundário. Dia da Independência é quase um símbolo disso mesmo, Armagedão outro. O poderio militarista e científico norte-americano trespassa igualmente para a cultura dos super-heróis no Cinema, seja através dos Vingadores, com Homem de Ferro, Capitão América, Hulk, Homem Aranha à cabeça, ainda que com a ajuda de semi deuses nórdicos (Thor) ou países fictícios em África (Wakanda).

Em The Wandering Earth, blockbuster baseado numa curta história de ficção científica com o mesmo nome do escritor Liu Cixin, são os chineses que salvam a humanidade, não os americanos.

O filme tem tido um enorme sucesso, com 606 milhões de dólares conquistados no território, tudo proveniente de espectadores que pagam um bilhete para verem outro tipo de protagonistas e histórias no género.

O princípio neste filme é simples, a resolução complexa. O sol arrefeceu e a Terra tornou-se inabitável. Apenas existe uma solução para a humanidade: fugir para além do sistema solar. A ficção científica chinesa tem crescido nos últimos anos e há mais filmes do mesmo género a caminho. Este é o período do nascimento de uma nova galinha dos ovos de ouro localmente, mas não só. Após o sucesso de Black Panther, o Afrofuturismo ganhou adeptos e novos focos de criação artística, em especial na literatura.

Neste momento, a ficção científica mais interessante é produzida em todos os tipos de lugares não tradicionais“, disse Anindita Banerjee, professora da Universidade de Cornell, EUA, à BBC. Já Mingwei Song, professor do Wellesley College, também nos EUA, um especialista em ficção científica e literatura chinesa explica que a ficção científica neste país não nasceu agora e tem precedentes, catalogados em diferentes vagas: uma após a queda da China Imperial em 1902; uma após a revolução chinesa em 1949; e a atual que começou nos anos 90, quando a China avançou num rápido padrão de desenvolvimento, fazendo surgir uma nova geração de escritores, onde Liu Cixin é mais importante.

Essa nova onda de ficção científica tem um lado obscuro e subversivo que fala tanto nas dimensões invisíveis da realidade como simplesmente na impossibilidade de representar a realidade ditada pelo discurso de um sonho nacional“, diz Mingwe, citando o exemplo de The Three-Body Problem, do mesmo autor, que no seu início mostra o pai do protagonista sendo linchado numa sessão de luta coletiva no auge da Revolução Cultural Chinesa.

Estou sempre impressionado com a continuidade e prosperidade do género (…) Algumas obras são muito subversivas e provocantes. Mas até agora elas não foram censuradas. (…) É um género literário que usa a imaginação para explorar as realidades invisíveis. Mas isso não desafia diretamente o governo chinês“, conclui

A maturidade da indústria cinematográfica

Quando a água flui, um canal é formado“, disse La Peikang, presidente da China Film Co., Ltd. – a principal produtora por trás de The Wandering Earth, numa entrevista à CGTN. Para ele, o sucesso do filme é um resultado natural do desenvolvimento da economia chinesa, que também expandiu a escala da indústria cinematográfica. Peikang diz que no passado, a tecnologia para os efeitos especiais não era boa o suficiente e os riscos de investimento eram demasiado altos, mas sabia-se que mais cedo ou mais tarde, a China precisava de ter as suas próprias produções de ficção científica, revelando que produção de The Wandering Earth começou há pelo menos seis anos.

O produtor disse ainda que o cinema chinês não podia constantemente repetir-se e basear todas as suas histórias nas antigas dinastias, nas artes marciais, nos romances e nos filmes infantis: “Precisamos de uma estrutura diversificada. Naquela época (seis anos atrás), acreditamos que o que faltava era a ficção científica“.

 

Recorrer à “prata da casa” nas histórias, personagens e equipas técnicas

O realizador deste The Wandering Earth é o chinês Frant Gwo e um dos principais nomes do elenco é Jing Wu, ele que no ano passado produziu, realizou e protagonizou o maior sucesso do box-office local, Wolf Warrior 2, filme de ação ao estilo Rambo que conseguiu acumular cerca de 874 milhões de dólares (€773,46M) em receitas.

Os produtores reconhecem que há seis anos atrás tentaram contratar cineastas internacionais, mas eles mostraram-se, ora desinteressados, ora ocupados com outros projetos. Gwo entrou em cena e através de um material que explora e coloca em destaque a cultura chinesa, os valores e sentimentos locais, oferece uma nova visão do género, afastada dos estereótipos do Ocidente como o grande salvador.

Para além disso, o realizador explica outra grande diferença: “Os filmes chineses não têm super-heróis. A maioria deles são pessoas comuns. Todos no meu filme são comuns (…) mas as suas decisões e ações acabam tornando-os heróis (…) há uma inclinação ao coletivismo, que é familiar ao público chinês (…) Os filmes chineses devem ter os nossos valores, uma alma chinesa, ou seja, os valores não podem ser padronizados. Não há bons e maus. Existem culturas diferentes“.

Ainda assim, Gwo admite que a China está 25 a 30 anos atrás de Hollywood em termos de produção e apresenta uma lacuna de 10 a 15 anos no trabalho de pós-produção. Com mais filmes do género a saírem em breve, é de esperar que essa distância se encurta a média prazo.

 

Mais ficção científica a caminho

Outro filme chinês com uma componente sci-fi que já está nas salas é Crazy Alien, embora acima de tudo seja uma comédia (extraterrestre). O filme já vai nos 318 milhões de dólares (€281.42M) em receitas.

A caminho estão: Realm of the Tiger, filme de ficção científica protagonizado por Li Bingbing; Shanghai Fortress, filme catástrofe sobre um ataque alienígena na Terra, com Lu Han e Shu Qi no protagonismo; Star Core; The Girl From the Future; Dark Side of the MoonProject 20,000 Miles, uma história de aventuras de viagens no tempo e no espaço ambientada na China; e Pathfinder, filme de sobrevivência interestelar sobre uma tripulação que se despenha num planeta deserto.

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