Terça-feira, 19 Março

«Hellraiser»: o Inferno “encaixotado” de Clive Barker

“Will tear your soul apart”

Quando o género do terror seguia numa rota de repetição, como o frenesim das sequelas de êxitos (Halloween, Friday 13th, A Nightmare on Elm Street) que invadiam as nossas salas, um autor genuinamente ligado a esse “mundo” tão rentável decide invocar os mais mórbidos dos pesadelos “sadomasoquistas”, isto naquele que poderá ser um dos mais originais enredos do terror nos finais da década de ’80.

Foi exatamente em 1987 que chegaria às salas de cinema de todo o Mundo, Hellraiser, um cruzar de mitos faustianos com a referência da caixa Pandora, um portal que abre dois reinos incoexistentes, ao contrário do que acontece nos dois estilos fundados em prol deste “fogo maldito” – o slasher e o splatter.

O macguffin de Hellraiser é uma caixa de puzzle chinesa, no qual reza a lenda que quem a decifrar poderá aceder a desejáveis dimensões. Um homem, Frank Cotton (Sean Chapman), conseguiu tal proeza, mas o preço a pagar foi demasiado alto. Contudo, de certa maneira, consegue escapar aos “anjos da perdição”, os Cenobitas, que o aprisionavam num eterno vórtice de dor. Mas o seu regresso ao mundo dos mortais é tudo menos risonho, desfeito e incompleto, Frank terá que pedir auxilio a uma das suas amantes para o reconstruir. Entretanto, os tais Cenobitas, liderados por o somente conhecido por Pinhead (o muito subestimado Doug Bradley), procuram a sua alma nos recantos mais obscuros do Inferno.


Convertido atualmente num filme de culto, Hellraiser sempre fora considerada uma obra adjetivada de “painfull” (dolorosa de ver). E não podiam estar mais certos disso. A obra-mestre de Clive Barker – autor de inúmeros contos envolvidos neste universo, provavelmente seguindo o conceito de “world building” levado à prática por outro autor do género, H.P. Lovecraft – revela-se numa incursão torturada ao sadismo como busca de um prazer inerente. O sadomasoquismo exposto e sugestivo, o signo destes demónios bastardos, é o elo que une esta fantasia com o nosso mundo atual. Mundo, esse, cujas essas formas prazenteiras são renegadas e repudiadas perante os conformes estabelecidos da sociedade. Porém, quem ainda rege a esses métodos, encontra refúgio na marginalização. E assim, restringem-se a nichos quase “subterrâneos”. Os nichos são representativos a essas “caixas” de difícil acesso, voluntariamente. 

Barker é um homem erguido nesse mundo visceral. Em jeito de convite ao nosso espectador, paraboliza-o com cenas “gore”, trazendo até ao seu legado clichés que ainda hoje perduram. Se o argumento pesa como um impasse para as vontades meta-fílmicas e perversamente sexualizadas, a verdade é que o enredo funciona, de certa forma, como uma máscara de outras perversões. Entre as quais, o prazer gráfico muitas vezes alicerçado à paixão do cinema de terror. Para além disso, há que realçar Hellraiser pelos seus valores técnicos, que auxiliam em prol desse engodo. A fotografia de Robin Vidgeon, por exemplo, é um fator a ter em conta, envolvida numa beldade gótica e pessimista, em conformidade com a composição musical de Christopher Young (a prevalecer esse tom gótico em constante eco).

O problema geral de Hellraiser reside principalmente no elenco. Nenhuma das interpretações tem a capacidade de sair da mediania, assim como as personagens não sobressaem dos seus propósitos figurativos, e Andrew Robinson não é meramente um exemplo de representação glamorosa. Adaptado de uma novela escrita pelo próprio realizador e argumentista, Hellraiser pode nos dias de hoje ser um filme ultrapassado em termos de efeitos especiais, mas só a sua caracterização, maquilhagem e efeitos práticos valem por isso. Brinda-nos com um enredo acima da “perseguição e facada” e é responsável pela introdução de muitos dos mais profundos pesadelos humanos.

Nos dias de hoje, possui mais de 9 sequelas de baixo-orçamento e um remake em pré-produção, mas o original é sempre mantido como uma porta aberta ao terror mais fetichista e não tão fantasioso como se julga.

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