Terça-feira, 19 Março

«Loulou»: O sexo como combustível do amor

A relação de Nelly (Isabelle Huppert) e Loulou (Gérard Depardieu) alimenta-se do desejo e da incerteza, dos prazeres efémeros e do improviso. Parece estar sempre por um fio, embora o seu fim também não esteja à vista, com as diferenças entre ambos a ficarem bem estabelecidas, tal como aquilo que os une. Estes são os dois personagens principais de “Loulou”, um romance embebido de drama, no qual o pragmatismo e a razão são regularmente despedaçados pelo doce sabor da incerteza e a ferocidade da libido. É essa curiosidade pela indefinição que parece compelir Nelly a envolver-se com Loulou, algo que a leva a trair André (Guy Marchand), o seu esposo, após mais uma discussão violenta.

O primeiro encontro entre os protagonistas ocorre numa discoteca. Ela estava na companhia do marido. Ele resolveu tentar seduzir a protagonista. Dançam, separam-se temporariamente, até esta ceder rapidamente ao prazer e à curiosidade, sem pensar muito nas consequências do seu ato, ou naquilo que vai fazer após o Sol nascer e trazer consigo as lembranças daquilo que foi feito com a complacência da Lua. O que fizeram estes dois durante a noite? Trocam mais uns passos de dança, com os corpos bastante aproximados, naquele que é o aquecimento para o movimento seguinte. Pouco depois vão fazer sexo, mas a sensualidade e o erotismo são deixados de lado, sobretudo a partir do momento em que a cama se parte. É o resumo paradigmático da ligação que se forma entre Nelly e Loulou, ou seja, instável e quebradiça, com o realizador Maurice Pialat a desenvolver a relação destes personagens de forma credível, sem acordes em falso ou excessos melodramáticos.

Apesar de Huppert e Depardieu estarem no centro do filme, também Guy Marchand tem uma palavra a dizer, com o elenco a contar com material e talento para compor personagens dotados de personalidade e complexidade. Huppert transmite a curiosidade de Nelly em relação a Loulou, bem como o enorme à vontade desta personagem com o seu corpo e a sua sexualidade. A atriz imprime uma faceta contraditória a esta figura que tanto tem de decidida como de indecisa, que parece ceder imenso ao desejo mas não deixa de exprimir alguns laivos de objetividade. Huppert tem ainda o condão de convencer-nos dos estranhos sentimentos que esta mulher nutre por Loulou, ou a protagonista não decidisse abandonar uma vida burguesa e financeiramente estável ao lado de André – com quem trabalha numa agência de publicidade – tendo em vista a iniciar um romance com o personagem do título. Este é um pequeno delinquente a quem Depardieu imprime um estilo pouco polido, irresponsável e carismático, com o ator a dar vida a um ex-presidiário que não trabalha, tem um grupo de amigos que se envolvem em algumas confusões e frequenta uma série de locais manhosos.

Os bares e os cafés baratos surgem como cenários recorrentes de “Loulou”, com estes estabelecimentos onde o consumo de álcool e tabaco é efetuado de forma regular a exacerbarem o gosto destas figuras pelos prazeres efémeros. Diga-se que o fumo proveniente dos cigarros, sobretudo os Gitanes, está muito presente ao longo do filme, algo que reforça a fugacidade inerente ao estilo de vida da dupla de protagonistas. O que leva alguém a trocar uma relação estável por um caso pontuado pela indefinição? A resposta está no interior da própria questão: a já mencionada sede de incerteza, aliada a algumas doses de desejo. A sofrer com o final da relação encontra-se André, um personagem conservador, de comportamentos nem sempre corretos, por vezes violento e profissionalmente estável, algo transmitido com competência por Marchand e realçado por diversas vezes ao longo da obra.

Marchand interpreta um tipo de personagem que podemos encontrar muitas das vezes nos filmes de Pialat: capaz de cometer atitudes violentas, bem como de exibir sensibilidade. André tenta continuar a trabalhar com Nelly, enquanto esta tanto explana uma vontade de se afastar emocionalmente deste indivíduo como de se reaproximar, com Huppert a estar em claro destaque ao longo do filme, seja quando grita e expõe os sentimentos da sua personagem de forma exacerbada, ou em situações de maior contenção ou trechos mais delicados. A química entre Huppert e Depardieu funciona, com ambos a evidenciarem de forma clarividente aquilo que une e divide este casal com um enorme apetite sexual. Ele não apresenta grande vontade em trabalhar, demonstra uma apetência notável para se envolver em problemas e raramente prima pela delicadeza. Ela sustenta a habitação de ambos (inicialmente um quarto de hotel, posteriormente um pequeno apartamento arrendado), envolve-se com o protagonista de forma surpreendente e esgueira-se pelo interior de um mar de dúvidas, com o sexo a ser o grande combustível deste envolvimento amoroso.

Se o sexo é o combustível, já o desejo é a pedra de toque e aparece de forma clarividente quando a dupla se encontra pela primeira vez na discoteca. Os planos de longa duração inserem uma sensação de imediatismo (um recurso muito utilizado ao longo do filme e nas diversas obras de Pialat), a câmara em movimento reverbera a inquietação que percorre os corpos dos personagens, enquanto a música da discoteca e as tonalidades das suas luzes incutem uma atmosfera calorosa a estes trechos em que Nelly e Loulou iniciam algo simultaneamente forte e instável. São momentos extremamente bem filmados e encenados, que contribuem para perpassar as emoções destas figuras, que tanto se divertem noite adentro (como os dois personagens principais) como se encolerizam (como André).

A violência emocional e física marca alguns episódios do filme, sobretudo quando Nelly e André discutem, com Pialat a regressar aos terrenos das relações-limite de “Nous ne vieillirons pas ensemble”, bem como às temáticas das traições e das tribulações amorosas, algo que podemos encontrar em vários dos seus trabalhos. De salientar ainda que o cineasta volta a apostar no uso das elipses para dinamizar o enredo, esconder alguma informação, deixar a mente do espectador a funcionar e expressar a faceta algo brusca e repentina dos episódios protagonizados pelos personagens principais. Se a relação entre Nelly e André conhece o ocaso, já a incerteza marca o envolvimento da protagonista com Loulou, enquanto somos compelidos a seguir este casal e aqueles que os circulam, sempre sem ter a certeza se algum dia conseguirão ser totalmente felizes

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