Quinta-feira, 9 Maio

“O ‘Pantera Negra’ romantizou a África”, afirma o realizador de “Demba”

A meio da diversidade da participação africana nas diferentes mostras da Berlinale 2024, uma trama afetiva vinda do Senegal, chamada “Demba”, constrói uma calorosa fortuna crítica na sua passagem pela seção Encounters.

O seu realizador é Mamadou Dia. Com suavidade, o cineasta mescla afetos familiares com sombras políticas de chagas coloniais. No enredo, com elementos fantasmagóricos, o funcionário público Demba está às vias de se aposentar e procura mudar a sua rotina na município, com a finalidade de cicatrizar a dor da morte da mulher com que viveu durante muitos anos. Mas a necessidade de reinventar a sua relação com o seu filho vai trazer fantasmas à tona.

Na entrevista, Dia contou ao C7nema o que vê de forte (e de arriscado) na atual produção cinematográfica senegalesa.

De que maneira a força exercida pela ausência da mulher do protagonista faz de “Demba”, no seu tônus metafísico, um filme de fantasmas?

Não sei se cabe associar as pessoas que nós perdemos a um lugar de espectro. Não podemos vê-las, mas elas estão connosco. Sei que o primeiro gesto de luto é a negação, inclusive a recusa dessa presença sensível dos que se foram. De certa forma, o filme passa por essa reflexão. As ausências que nos desamparam, no filme, passam pela falta de ação do Estado. De certa forma, Demba é esmagado por um Estado inadimplente.

Como aplicaria essa ideia de inadimplência ao âmbito da cultura senegalesa, ao cinema?

Havia uma sala de exibição na cidade onde nasci que tinha grande importância. Se pensar em Dakar, por exemplo… durante os anos da minha juventude e da minha formação de olhar, tínhamos uns dez cinemas por lá, dos grandes, sempre cheios. Hoje, só temos dois. É triste pensar nessa aritmética quando vivemos uma fase de forte produção com Mati Diop, Alain Gomis e outros. A minha forma de reagir é manter a minha estética pessoal como um processo de comunicação direto, ou seja, quando faço um filme, excursiono com eles pelo meu país, de modo a levar a minha narrativa até as pessoas. O único sistema viável para o cinema de autor é manter-se na sua dimensão ritual, é o boca a boca. O que mudou a dinâmica da relação do público do Senegal com o grande ecrã? O buquê de atrações que estão à nossa oferta, todos os dias, nas TV’s e nos streamings. As séries chegam com tanta força que ocupam o espaço mediático do cinema como espetáculo.

No Festival de Locarno de 2023, um conterrâneo seu, Moussa Sène Absa, pintor e realizador, falou em uma “wakandização” da África no cinema, numa sequela publicitária do sucesso de “Pantera Negra” (2018). Refere-se a uma visão épica gourmetizada do seu continente. O que pensa desse rótulo criado por Absa?

Pantera Negra” romantizou a África. Por um lado, isso foi bom, por despertar mais interesse para as nossas histórias. Por outro, criou uma armadilha, pois faz o imaginário coletivo resumir-nos a histórias sobre reis e heróis. Hollywood não se interessa em falar de África a partir de um enredo de perda, com pessoas comuns. Essa “wakandização” não me incomoda, mas gerou essa romantização.

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