Sexta-feira, 17 Maio

Pilar da literatura amazónica, Milton Hatoum reforça a sua prosa com o cinema em ‘O Rio do Desejo’

Fonte inesgotável de invenção e de conhecimento sobre o mundo amazónico, nos ritos mais coloquiais do seu povo, imune a qualquer exotismo, o escritor Milton Hatoum “é a maior diversão”. O uso das aspas se refere a uma expressão muito popular no seu país, o Brasil, para se referir ao cinema, usada e popularizada nos anos 1970 e 80 – décadas sempre presente na sua prosa, em conexão do exorcismo com a ditadura militar. Já na sua consagradora estreia como autor, em Relato de um Certo Oriente (1989), laureado com o troféu Jabuti (a honraria maior do mercado editorial brasileiro), ele virou uma espécie de atlas poético da geografia humana de Manaus e um pilar para a análise crítica dos saldos ditatoriais na cultura brasileira. Publicou joias como Cinzas do Nortee Um Lugar Mais Sombrio”. O património literário erigido por ele já foi publicado em catorze países, traduzido nas mais variadas línguas, e recebeu em 2018 o prêmio Roger Caillois (Maison de l’Amérique Latine/Pen Club-França).

Aos 70 anos, Milton Hatoum é um titã do romance no Brasil

Em 2015, Órfãos do Eldorado, de Guilherme Coelho, abriu os diques do cinema para as águas turbulentas da sua literatura. Na sequência, a TV Globo investiu na monumental minissérie Dois Irmãos, de Luiz Fernando Carvalho. Nos próximos meses, Marcelo Gomes deve exibir sua versão de Relato de um Certo Oriente em um dos grandes festivais da Europa – aposta-se em Cannes. Mas hoje, uma releitura muito particular de um conto de Hatoum – O Adeus do Comandante, publicado no livro A Cidade Ilhada– acaba de chegar às telas, em forma de longa-metragem, sob a realização de Sérgio Machado (de Cidade Baixa). Em novembro, o filme conquistou a láurea de Melhor Fotografia (contemplando a luz majestosa de Adrian Teijido) no Festival Tallinn Black Nights, na Estônia, levando a realidade da Amazônia planeta adentro.

A sua trama é uma ciranda de quereres. Ao se apaixonar pela bela e misteriosa Anaíra (papel de Sophie Charlotte), o ex-polícia militar Dalberto (Daniel de Oliveira) larga a farda e se torna comandante de um barco. O casal passa a viver na casa que Dalberto divide com os dois irmãos, às margens do Rio Negro. Essa vida flui bem até ele ser obrigado a se arriscar numa longa viagem rio acima. Em meio a essa jornada, desejos proibidos vêm à tona. Enquanto Dalmo (Rômulo Braga), o irmão mais velho, luta para controlar a atração que sente pela cunhada, Anaíra e Armando, o mais novo, vivido por Gabriel Leone, aproximam-se dela caudalosamente. O regresso de Dalberto reúne, sob o mesmo teto, os três irmãos apaixonados pela mesma mulher.

Na entrevista a seguir, Hatoum fala ao C7 sobre as fricções políticas e linguísticas que movem o seu trabalho como contista e romancista.

Existe toda uma geração de leitores que descobriram uma Amazónia além da geografia física graças a você. Que responsabilidade reside nisso?

Desde o início da minha obra, elaborei um projeto literário que falasse de dramas e conflitos humanos, e que, inicialmente, seguisse o percurso da minha vida; da minha infância e da minha juventude em Manaus; e, depois, passasse por Brasília e por São Paulo, cidades onde vivi. Manaus ainda não estava no mapa da nossa literatura. Mas eu tenho uma experiência naquela cidade. A minha infância foi lá. O que fiz foi tentar transformar essa experiência, com o acúmulo da memória, em ficção. Não escrevi nenhum romance pensando que eles um dia se tornassem filmes. Trabalhei nessa linha apenas em textos complementares ao conto “O Adeus do Comandante”, que escrevi direcionados ao filme do Sérgio Machado. Esses foram os únicos textos que escrevi pensando em cinema. Ele constribuíram para o roteiro que o Sérgio fez com a minha irmã de alma, a Maria Camargo, e o George Walker Torres, e que ficou muito bom. O filme traduz um bom recorte da Amazónia, capaz de trabalhar sentimentos sem precisar de heróis ou de vilões. O Sérgio e o meu editor, Luiz Schwarcz, sugeriram que eu publicasse esse material, mas teria que trabalhar bastante, até reescrever. E, agora, estou a terminar o terceiro volume de uma trilogia e não quero passar de um manuscrito para outro, porque fico meio embaralhado e não consigo me concentrar nas duas coisas.

Esta nossa entrevista se conjuga num momento em que você faz a revisão ou reescreve o que deve ser o seu novo romance. Que livro será esse?
O novo livro se conjuga com Pontos de Fuga e A Noite da Espera”. Posso adiantar que esse volume é a história da mãe. Existe um silêncio em relação à história dela, mas o público leitor que acompanhou a trilogia espera sobre essa mulher. Esse terceiro volume ainda não tem nome, mas pretendo terminar este ano. Estou revisando esse texto. A maldição da revisão é que vários escritores cortam muito e eu tenho mania de acrescentar.

Sophie Charlotte tem uma atuação devastadora na longa-metragem de Sérgio Machado, baseada no conto “O Adeus do Comandante” – Crédito: Gullane

Diante da estreia de “O Rio do Desejo” e da preparação de outros projetos para as telas que se derivam da sua obra, como você avalia a sua conexão com o cinema?
Fã do neorrealismo italiano, entusiasta de Luchino Visconti, sou cinéfilo e vi Morte em Venezavárias vezes. No século XX, a partir do advento do cinema, a literatura encontrou nele um novo veio. Há filmes que são muito literários. No cinema brasileiro, você tem adaptações incríveis, como Vidas Secas, por exemplo. Versões como essa alimentam e estimula os escritores. Os filmes que trabalham mais com reflexões e cenas mais lentas que sugerem muitas coisas. Em Manaus, nos anos 1960, eram exibidos alguns clássicos na biblioteca pública. Até Glauber Rocha passou pela cidade na época, rodando o documentário Amazonas, Amazonas. Ele aparece no meu livro Pontos de Fuga”.

Gênese do filme, livro marca a estreia do autor em contos

Você alfabetizou o Brasil em relação à Amazónia. Deu para nós uma alfabetização poética sobre uma cultura. A literatura hoje ainda consegue alfabetizar o Brasil?

Sendo uma transcendência da realidade, a literatura permite ao leitor conhecer esse real de onde ela brota em profundidade. Existem, sim, leitores que despertam o interesse por questões que estavam obscuras, mas transparecem numa ficção. Há casos de best-sellers, como foi Torto Arado, do Itamar Vieira Jr., e apresentou a realidade de um Brasil das populações negras, oprimida pela herança escravocrata.

Isso aconteceu comigo, de certo modo, com Dois Irmãos, que não é um best-seller mas é adotado em escolas, é citado em provas. Sempre existe um tempo de espera antes que um romance possa atingir alcance maior. Isso pode ser imediato ou ser mediado pelo tempo. Seja em que velocidade for, os livros formam leitores. Acho isso fundamental para o Brasil, onde a questão da qualidade da escola pública é essencial para uma formação de base. Estudei numa escola, o antigo Ginásio Amazonense Pedro II, que tinha uma biblioteca fantástica, além de bons professores. E existe ainda o incentivo do lar. A minha mãe era uma mulher simples que um dia decidiu comprar a coleção completa de Machado de Assis. Comecei a ler os contos do Machado com meus 12, 13 anos. Isso faz diferença.

Além de Machado de Assis, quem mais fez diferença? Existe alguma voz autoral na sua formação que hoje não é tão valorizada?
Graciliano Ramos foi decisivo na minha vida. Percebi ali algo que não era uma linguagem derramada, e, sim, uma prosa sem adornos, muito seca. Acerca dos livros pouco lembrados… lembro-me que li O Ateneu. Hoje, não sei se ele ainda é lido pelos jovens, mas é um dos grandes romances da nossa literatura.

Os irmãos vividos por Daniel de Oliveira, Rômulo Braga e Gabriel Leone entram em conflito ao compartilharem a mesma paixão

É consciente a maneira como você constrói a sua linguagem na prosa? Como é estruturada a sua carpintaria na construção do discurso, na ficção?

Muita coisa é projetada, sim. Primeiro, armo o conflito na minha cabeça. O primeiro esboço é absolutamente mental. Fico pensando nos conflitos e nas personagens. Depois, como estudei Arquitetura, faço um estudo e um projeto do que quero escrever. Tudo isso é alterado depois, uma vez que o romance se faz mesmo no momento da escrita. Embora pense no modo de ser das personagens e no relacionamento entre eles, o imprevisível conta muito. Mesmo a escolha das palavras… elas surgem no momento da escrita. O Bandeira dizia que o “poema se escreve”. Ele falava sobre essa dádiva do poeta. No romance, que é uma arte da espera, quando escreve, você sabe que vai mudar muitas coisas. Eu faço um embate comigo mesmo, pois quero seguir um esquema, tento e não consigo. Fico chateado comigo mesmo.

Uma vez que se fala aqui de construção de linguagem, qual seria o lugar do silêncio na literatura?

O silêncio diz muito, por insinuar. É o momento do livro em que você não deve expor nada. A falta de palavras revela muta coisa. O silêncio oferece ao leitor a possibilidade de imaginar. A pior coisa que pode acontecer com a literatura é o romance explicativo. São romances que possuem mensagens ideológicas explícitas ou que se apoiam em denuncias. O caminho do romance é outro. É contornar esse silêncio, é fazer com que o leitor tenha dúvidas. No cinema, por exemplo, o silêncio foi usado com maestria por Bergman.

Fraternidade, tema explícito em “Dois Irmãos”, mas também presente em “O Rio do Desejo”, simboliza que valores para a sua literatura?

A ideia de fraternidade no Brasil era para ser um sonho solidário. Mas esse sonho não aconteceu. Tem uma professora, a Mirella Longo, da Bahia, que fez uma leitura de Dois Irmãos”. Ela fala dos Brasis desses irmãos que não se entendem. Ela amplia isso para uma incapacidade de as diferentes regiões do Brasil se entenderem como irmãs. Pensei nessa questão da fraternidade recentemente a partir do romance do Machado de Assis Esaú e Jacó”, que deveria ser mais lido, pois não acho que seja um livro inferior aos outros dele.

Como é a sua relação com a literatura de Portugal?

Em Portugal, no Brasil e em todo lugar existe muita pressa em publicar, e a pressa é a maior inimiga da literatura. Mas há uma literatura de língua portuguesa muito forte lá, sem contar as literaturas lusófonas que chegam de países africanos. Dei sorte de ter uma bela edição do A Noite da Espera e de Relato de um Certo Oriente”, em Portugal, pela Penguin. Os meus outros livros saíram em terras lusas pela Cotovia, cujo editor morreu recentemente. Não sei se o material ainda está em catalogo. Portugal possui grandes autores, como Saramago e António Lobo Antunes. Gosto muito de Herbeto Helder na sua obra poética. Tem uma escritora, Isabela Figueiredo, que gostei muito. O seu Cadernos de Memórias Coloniais é um dos livros mais incríveis que já li sobre o colonialismo português.

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