Quinta-feira, 28 Março

«Bostofrio»: “Quero fazer o cinema que me dá na telha”, diz Paulo Carneiro

Na sua primeira longa-metragem, acompanhamos Paulo Carneiro na sua jornada pessoal pela aldeia de Bostofrio, Trás-dos-Montes, em busca do paradeiro do seu avô, um homem que nunca conheceu e do qual ninguém deseja falar.

Paulo Carneiro foi assistente de realização e montador de alguns dos filmes de João Viana (A Batalha de Tabatô, Our Madness), tendo se estreado na realização com a curta Água para Tabatô, a qual expunha a rodagem de um dos filmes de Viana. Segundo consta, foi depois de produção de Our Madness que Paulo Carneiro, com uma equipa bem reduzida e um orçamento limitado, parte para a terra que acolhera a sua génesis, para iniciar genuinamente o seu percurso pelo Cinema. É lá que procura as informações do seu mais conhecido desconhecido. Simultaneamente, emancipa-se enquanto pessoa e cineasta.

Bostofrio atenta-nos como um pequeno filme que revela um nome a reter nas aventuras e desventuras do documentário português, e não só. O C7nema teve o prazer de conversar com Paulo Carneiro sobre as suas ideias de cinema, ouvindo atentamente às suas declarações do chamado “cinema da rua”.

Deixa-me começar pela pergunta básica e revista. Como surgiu a ideia para este Bostofrio? Porquê a escolha da demanda pelo paradeiro do seu avô para primeiro filme?

O que dá mote ao filme existe antes de existir o Cinema na minha vida. Por que no fundo, os meus filmes são sobre questões que tenho na minha cabeça e que me concedem a mim. No fundo, sempre quis saber do meu avô. Perguntava constantemente por ele, mas o meu pai simplesmente não queria falar disso. Era um tema sensível na minha família e compreende-se. E se o meu pai não respondia às minhas questões, encontrei no Cinema uma forma das responder.

A todos nós importa conhecer as nossas raízes, a nossa identidade. O Serge Daney tem uma citação curiosa, ele dizia que no Cinema toda a gente anda à procura do pai.

Mas no fundo, esta procura por conhecer mais sobre o seu avô é um pretexto para conhecer mais sobre si?

Completamente. Apesar do mundo servir-se do Cinema para isso. Eu próprio tive a ideia de criar com este primeiro filme uma identidade. O que acontece é que no Cinema estão sempre a pôr-nos em caixas, mas eu não quero estar dentro de uma caixa. Há a caixa da “Escola de Cinema”, a caixa dos “Alunos do Paulo Rocha” ou a caixa dos “Alunos do António Reis”. Estão sempre a colocar essas questões … No fundo, o que quero ser é apenas “eu”.

O que pretendo realmente fazer é “cinema da rua“. Atenção, não é cinema que tenta passar por “cinema da rua“. Quero fazer o cinema que me dá na telha. O Cinema com sangue na guelra, com uma força. Não o Cinema hipócrita, não o que tenta falsear, mas o que assume o que é.

Nessa questão das “caixas”, e por ter trabalhado diversas vezes com o João Viana como assistente de realização, não o vemos inserido numa secção de “Alunos do João Viana”?

Julgo que não. Não sei se os espectadores irão ver algo de João Viana no meu filme, mas não é a minha intenção. Atenção, acredito que os filmes que tu fazes são os filmes que vês e os livros que lês, ou seja, pode existir alguma influência pelo facto de trabalharmos juntos, mas não foi o João Viana que me ensinou a fazer filmes.

Quer falar-nos mais sobre esse “Cinema de Rua”? O que realmente pretende ao afirmar isso?

O “cinema de rua” é um statement, não é propriamente um cinema filmado no espaço urbano. É um cinema de vontades, um cinema de gestos. É um cinema que afirma aquilo que sou (…) É um cinema que não é sonso, no sentido em que penso na sua própria feitura, nos próprios métodos de produção e não a quem devo agradar.

Existem muitos realizadores que aproveitam a estadia no meio rural para filmar os seus filmes, e por vezes encontramos neles uma espécie de técnica desengonçada. Em Bostofrio, por outro lado, o Paulo possui um certo rigor no plano e no que quer realmente mostrar ao espectador.

Sim, é rural, é bonito.” [ironiza]. Eu conheço aquela localidade, passei imensas férias lá quando era pequeno e tudo aquilo o qual chamamos de rural, por exemplo, o campo, as vacas, etc., nada disso me deslumbra. No meu filme existe um romantismo, mas não um deslumbramento, nem sequer uma tentativa de romantizar a aldeia. Aquilo é assim, as pessoas são assim, mas não é “sujo” como muitos anseiam mostrar nessas romarias ao meio rural. E quando refiro a “sujo”, menciono aquele lado desengonçado.

Conheço aquelas pessoas e senti-me no meu dever de fazer um filme verdadeiro, achando que deveria glorificar aquelas pessoas. Agora, se consegui ou não, isso já não sei. O que não queria era assumir aquela atitude de: “vamos filmar na aldeia porque na aldeia é que é bonito“.

Acerca do processo de filmagem? Filmaram muito material? Se sim, como o selecionaram?

Nada era planeado. As primeiras reações das pessoas quando as encarava com as questões do meu avô são precisamente as que vês em Bostofrio. Claro que primeiro informava as pessoas que estava a fazer um filme. Eu sabia que me interessava filmar daquela maneira e era essa maneira que prosseguia. No outro dia, perguntaram-me o facto de estarem creditados quatro montadores e qual seria a relação com eles? O facto de estarem quatro montadores tem a ver com as características de cada um. Este não foi um filme resolvido na montagem. Aliás, era impossível este filme ser resolvido na montagem. Ele deve ser previamente montado na tua cabeça. Não há soluções, não se filmam soluções.

Isto tudo para dizer que há pouco material de filmagem. Bostofrio foi filmado, cerca de 80%, por ordem cronológica. Sabia que era um risco, mas queria respeitar a cronologia das conversas de forma a preservar a sua evolução. “Cada conto acrescenta um ponto”. Mesmo para mim, esse seguimento é parte do meu próprio processo.

O meu filme é muito objetivo, muito formal, e sendo montador tenho medo de filmar muito. [risos] Porque mete medo. Imagina filmar 200 horas! Às vezes aparecem realizadores com 100 horas e tu [montador] tens que visionar tudo. [risos].

O truque é conhecer e perceber muito bem o espaço antes de começar a filmá-lo, para depois chegares e saberes enquadrar. Para mim é importante esta ideia de não ter medo onde meter a câmara. O Oliveira dizia isso mesmo: “para cada plano existe um ponto de vista”.

Mas voltando ao rigor técnico que menciona, para além dos planos e enquadramentos pensados, existe em Bostofrio um certo lado nu, uma exposição do processo de rodagem?

Porque não há medo de mostrar a imperfeição. Ou seja, há um formalismo técnico, mas não há nenhum problema com a imperfeição.

Nesse sentido, pensa em seguir a ficção?

Sinceramente, não digo nunca, mas para já não me vejo a fazer ficção. O meu problema com a ficção é dirigir atores. Lidar com atores é complicado e isso não me interessa e para já não tenho esse fetiche; o de encenar; o de trabalhar com eles.

Quanto a novos projetos, pensa continuar por este cinema pessoal?

O meu próximo projeto é também ele pessoal e já vai em fase avançada na montagem. O que posso dizer é que é um filme sobre carros. [risos] Calma, será um filme que usará os carros para falar de outras coisas, assim como em Bostofrio usei o pretexto do meu avô para referir outra coisa.

Penso que este filme será menos consensual que o Bostofrio, pois darei ênfase à minha causa do “cinema da rua”. Deixe-me só frisar: é o cinema que está à flor-da-pele, mas não está relacionado com a criminalidade.

Notícias