Sábado, 18 Maio

Helena Wolfenson: “Esperamos que o filme movimente o tema da negligência e da injustiça”

As realizadoras Helena Wolfenson e Aline Lata receberam no Doclisboa o Prémio Canon do Júri da Competição Internacional pelo seu "O Lugar mais Seguro do Mundo".

Em 5 de novembro de 2015, uma barragem no interior do Estado de Minas Gerais, no Brasil, rompeu-se. Toneladas de detritos minerais foram lançados, soterrando a pequena localidade de Bento Rodrigues e levando lixo tóxico até o Oceano Atlântico. 18 pessoas morreram e uma nunca foi encontrada e, passados seis anos, a situação jurídica continua complicada e o consórcio liderado pela multinacional Samarco nunca pagou devidamente a sua dívida com a população e, muito menos, as enormes consequências do desastre ambiental daí originado.

As realizadoras Helena Wolfenson e Aline Lata receberam no Doclisboa o Prémio Canon do Júri da Competição Internacional  pelo seu “O Lugar mais Seguro do Mundo“, filme construído após nos anos que se seguiram ao acidente. Na obra elas seguem o jovem Marlon, que perambula pelos destroços e pelas memórias da sua antiga cidade enquanto aguarda uma justiça que não chega  – revelando uma tragédia de dimensões não só humanas e ecológicas, mas também de desenraizamento e destruição da memória.

Conforme observa Helena Wolfenson ao C7nema, elas esperam que o filme movimente este assunto ainda em aberto, para além do alerta sobre os enormes riscos ainda existentes vindos da indústria da mineração. “Apenas no Brasil há cerca de 156 barragens de rejeitos de minério com risco de rompimento. Nós vemos esse processo como um caminho cheio de negligências das empresas e também do Governo, que foi permissivo e abrandou as punições”.

Uma das tragédias que o filme relata é a perda da memória coletiva e do desenraizamento…  Depois do luto esse é um processo de difícil superação…

Bento Rodrigues ainda preserva a estrutura de algumas casas que ficam no alto, ilhadas pela cidade coberta de rejeito de minério, hoje camuflado pelas gramíneas que crescem com o tempo entre ruínas de paredes e portas pequenas, proporções obviamente transformadas.

Apesar da Samarco ainda ter o domínio forçado da região e agir como dona daquela terra com portaria, seguranças, câmeras e carros que te perseguem pelo espaço, ela ainda não recuperou absolutamente nada da cidade que destruiu.

Ainda há famílias, como a de Marlon, que levam tudo o que precisam até lá para reviver as memórias, tomar um fôlego para a luta e ter a chance de se sentir em casa de novo. Mesmo que essa sensação só chegue mais forte à noite, quando a escuridão permite imaginar o que já não existe e assim as danças e rezas acontecem, como um ato político de resistência e ocupação por pessoas que não querem deixar suas memórias e raízes serem arrastadas pela lama também.

Depois de todo esse tempo olhando para esta tragédia, entendemos que não existe a superação de um luto, a tragédia ainda é viva, o que fica é uma luta incessante por justiça.

Como conheceram Marlon e como foi a sua cooperação no sentido de contar a sua história?

Nós duas fomos levadas ao cenário da tragédia pelo ímpeto de ver de perto aquilo que nos tirava o sono, notícias de uma onda de 14 metros de lama que havia soterrado uma cidade e que, em pouco mais de duas semanas, chegaria até o mar se nada fosse feito para contê-la – como de facto não foi.

Fomos ao local do crime não com a ideia prévia de fazer um filme, mas de ver com os nossos próprios olhos, cada uma à sua maneira, o que estava acontecendo e como poderíamos ajudar. No entanto, foi a força do encontro com Marlon e alguns de seus amigos que nos fez voltar para casa com a vontade de acompanhá-los mais e contarmos essa história em forma de um filme.

Visitamos com eles Bento Rodrigues pela primeira vez, nossa e deles após a fuga no dia da tragédia.  Lá do alto, logo na entrada, ficamos todos parados olhando a vista avassaladora, nós duas tentando desvendar aquele lugar, enquanto eles olhavam pra lama cobrindo tudo que conheciam. Foi muito forte.

Ficamos por perto, interessadas em saber cada vez mais o que pessoas tão jovens sentiam em relação a tudo aquilo, como eles sentiam que o crime poderia ter sido evitado. Acompanhamos eles ao longo de cinco anos, visitando suas casas de tempos em tempos. O Marlon foi nos guiando com suas falas, com seus silêncios, sua indignação e aos poucos entendemos o recorte que queríamos para o filme em detrimento a tantas outras possibilidades.

Como está hoje a situação dos desalojados? A Fundação Renova declarou no ano passado que a pandemia havia atrasado as reparações…

Marlon continua brigando na justiça pelo seu reconhecimento como atingido, ele tinha 21 anos quando tudo aconteceu, mas a Samarco entende que ele era dependente da mãe e tenta via justiça não pagar o auxílio mensal que deveria pagar para todas as vítimas. A empresa já perdeu o processo algumas vezes, mas segue recorrendo e ainda não pagou o retroativo que Marlon tem direito.

Sobre as indenizações, a Samarco sempre tentou desarticular a organização civil e a organização coletiva, promovendo acordos individualmente, caso a caso. O que faz com que a resistência seja muito mais difícil. Até onde sabemos, apenas menos de 30% dos atingidos receberam indenização integral. Inclusive a empresa está atrasada em relação ao acordo de indenização aos atingidos que fizeram com o Ministério Público, em 2016.

A Nova Bento Rodrigues ainda não está finalizada, a entrega também está atrasada, no início era prevista para ser entregue três anos após o rompimento da barragem, ou seja, final de 2018. No entanto, a atual previsão é final de 2022.

As empresas permaneceram impunes, assim como o risco de novos acidentes por parte deste tipo de exploração. Como vêem esse processo?

A Samarco, Vale e BHP Billiton ainda não fizeram a desativação das barragens em risco no Brasil e seguem sendo negligentes. Em Bento Rodrigues, por exemplo, construíram o Dique S1, S2, S3 e S4, após o rompimento, como uma medida emergencial para conter os rejeitos durante o período de chuvas.

O prazo para o descomissionamento era de três anos (2016-2019), mas até agora os Diques continuam lá, inclusive o Dique S4 tornou submersa boa parte do terreno de Bento Rodrigues. O que é ainda mais absurdo, pois se apropriaram do local em que era a cidade e colocaram em risco o patrimônio privado e histórico.

É muito claro para nós, que a empresa se aproveitou do rompimento para se apropriar de um território que já era visado após a tragédia, o que além de ter sido um processo muito pouco noticiado, é segundo as palavras de Marlon uma consequência desse tipo de poder político. “Eles (a Samarco) fizeram o que queriam fazer, é deles (a área de Bento) agora.

Apenas no Brasil há cerca de 156 barragens de rejeitos de minério com risco de rompimento.

Nós vemos esse processo como um caminho cheio de negligências das empresas e também do Governo, que foi permissivo e abrandou as punições.

Como foi a decisão de sair de São Paulo para, de alguma forma, ajudar após a tragédia?

Fomos para Mariana uma semana depois da tragédia com alguns amigos, não tínhamos a intenção de fazer um documentário, não nos conhecíamos tão bem, ficamos disponíveis para investigar, fornecer informações e materiais audiovisuais para canais independentes de jornalismo. Ao mesmo tempo que nos envolvemos com o trabalho voluntário para o cuidado de animais e também a entrega de doações para as famílias desabrigadas, ou que estavam com o acesso limitado devido a lama.

Como foi uma área muito grande atingida, tinham informações desencontradas e todos que estavam lá se ajudavam para tentar organizar e minimizar as necessidades. Foi importante para nós sair do lugar de conforto e ir até lá. Esperamos que esse filme voe e movimente o assunto do impacto da mineração, da negligência das empresas, da injustiça, que inclusive se repetiu três anos depois, em Brumadinho.

Notícias