Domingo, 19 Maio

Maricel Álvarez: “O teatro é a minha língua mãe”

Já trabalhou no cinema com Alejandro G. Iñárritu (Biutiful), Woody Allen (Para Roma Com Amor) e Ana Katz (Mi Amiga Del Parque), mas ainda hoje quando falamos com ela, é quando a palavra teatro ecoa que os seus olhos brilham mais intensamente. “O teatro é a minha língua mãe. É o lugar de onde venho, onde construí um caminho estético, político e poético”, diz-nos mal começamos a nossa conversa em San Sebastián a propósito da sua participação no filme “Piedra Noche”, lembrando com nostalgia a sua passagem por Portugal em 2005, numa encenação que teve como palco a Culturgest. “Já foi há tanto tempo. Noutra vida. Tenho mais de duas vidas. (risos) Não só sou atriz e diretora de teatro e cinema, mas curadora de artes visuais, docente e coreografa”.

Nascida em Buenos Aires, Maricel Álvarez considera que o trabalho nas artes vivas define-a, mas já há uns anos decidiu fazer um caminho no cinema como atriz. “É um espaço que também me parece valioso. Teatro e Cinema são dois meios muito distintos que demandam que um ator use ferramentas de expressão muito diferentes, por isso o cinema é sempre um lugar de aprendizagem e formação”.

Maricel Alvarez | Foto por Montse Castillo

Piedra Noche

A dor de perder um ente querido tem servido como base para alguns títulos absolutamente essenciais no cinema, e pegando num guião de Santiago Loza, Iván Fund levou ao cinema um conto sobre o peso da memória e o luto, trabalhando em terrenos que pisam o cinema fantástico. O filme começa com a chegada de Sina (Maricel), uma mulher que vem ajudar uma amiga, Greta ( Mara  Bestelli), e o marido dela, Bruno, nas mudanças para uma nova casa. É que no local  outrora paradisíaco (uma casa de praia frente ao mar) onde viviam, um monstro aberrante na forma de uma plataforma, ocupou o mar. Se essa presença aberrante (visualmente) se afigura como um monstro na paisagem, ela não é a única criatura com que a dupla terá de lidar durante este filme, que começa um ano depois da tragédia da perda do filho por parte do casal, que representa a principal razão da sua mudança para longe dali. “O meu papel é o da Sina, a Greta é quem lida mais com a dor. A minha personagem é uma testemunha, observa e acompanha os eventos. Ela estende uma mão e tenta ser útil para compreender o incompreensível. Ela sente dor, mas uma dor diferente. A dor de ver a sua amiga que perdeu uma criança. Dói-lhe, mas claro, ela consegue criar alguma distância e ver o quadro maior. E nesta concessão que ela faz há muito amor pelo outro, pelo diferente, pelo pensar distintivamente. Ela abraça uma fantasia que não faz parte do seu sistema de crenças. Isso a mim interessa-me pois não sou uma pessoa religiosa, mas sempre me preocupou, como pessoa e não só artista, fazer o exercício em que tento entender o outro na sua complexidade. Por isso gosto muito desta personagem e acho-a muito bonita. Ela também é protagonista, mas num lugar secundário da dor.” 

Esta colaboração com o realizador Iván Fund foi a segunda da carreira de Maricel, que anteriormente participou em “Toublanc” (2017), filme no qual foi criada uma ligação ao cineasta que a fez querer voltar a trabalhar com ele. Assumindo-se como humilde, na vida e profissão, a atriz diz que espera sempre que um ator se ilumine e bloqueie toda a imensa informação que está ao seu redor: “Como ator, tens de ter a capacidade de mudar de rumo se tal tiver de ser. O melhor, inclusive para um ator, é desaparecer. (Neste caso) fujo e aproximo-me da dor. E o Iván faz isso no filme através da fantasia, da fábula. Pareceu-me super interessante como exercício. Gosto do drama e até do melodrama, mas pensei que seria interessante ir noutra direção e visitar outras cores e tonalidades [para falar da dor da perda de um filho]“.

A pandemia e o perigo de extinção para as artes vivas

Maricel Alvarez não tem dúvidas. Para as artes visuais, a pandemia foi o horror. Foi enfrentar um vazio. “O corpo não pode desmaterizalizar-se e todas as estratégias para continuar a viver a fazer teatro foram para mim de sobrevivência. As artes vivas não podem subsistir assim, online. Há que voltar à materialidade dos corpos, ao vivo, a algo extraordinário que é estar assim. Foram anos muito duros, obscuros para o teatro, a comunidade teatral e artística. Anos de muita perda.” 

Para a atriz e encenadora, agora há que recompor-se sem esquecer o que aconteceu, até porque, como nos disse, quando tudo começou todos diziam que íamos sair mais fortes e isso não aconteceu. “Não digo que saiamos fortalecidos, mudados mas que ao menos consigamos sair com um nível de consciência de quão frágil somos e do perigo que vivemos. Vivemos um perigo de extinção das artes vivas”.

Por isso mesmo, com a pandemia e o cada vez maior avanço das plataformas de streaming, os festivais de cinema saíram reforçados como espaços de encontro para expressar o amor pelo cinema, pelo ir a uma sala: “O encontro é uma característica e necessidade muito própria do ser humano. E nesse encontro tem de haver discussão, o ato de falar, com ou sem consensos. Em algum momento temos de falar. Nas práticas artísticas passa-se o mesmo. Vimos de um trauma e temos de começar a falar. Nesta conversação têm de surgir novos tópicos para abordar. Não da pandemia em si, mas das coisas que ela aumentou. Todos os problemas contemporáneos que afectaram diferentes grupos etários“.

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