Sábado, 4 Maio

Retrato da Rapariga Em Chamas: o filme que também foi uma incubadora de realizadoras

Além de ser um dos melhores filmes dos últimos anos (vencedor de melhor filme do ano em 2020, no C7nema), existe uma faceta de “Retrato da Rapariga Em Chamas” que começa só agora a revelar-se com maior intensidade.

Protagonizado por Adèle Haenel, Noémie Merlant e ainda com Luana Bajrami no elenco, o filme de Céline Sciamma funcionou igualmente como uma espécie de masterclass da cineasta às suas atrizes e uma verdadeira incubadora de novas realizadora que mostraram agora em Cannes as suas primeiras longas-metragens.

Se a passagem de Adèle Haenel pela Croisette foi como narradora do espesso e urgente “Regresso a Reims” (muita atenção a este documentário), a de Noémie Merlant e Luana Bajrami ficou destacada pela apresentação de “Mi Iubita, Mon Amour” e “The Hill Where Lionesses Roar”.

Noémie Merlant

Figura de destaque no elenco do também presente em Cannes “Les Olympiades“, onde interpreta o papel de uma jovem frígida e traumatizada que inicia uma relação virtual com uma estrela pornográfica com a qual se assemelha, Merlant leva-nos na sua estreia na realização – “Mi Iubita, Mon Amour“, exibido numa sessão especial –  a uma despedida de solteira na Roménia. 

Daqui a um mês serei uma mulher casada”, diz ela na primeira sequência filmada num carro, onde ela se encontra com três colegas para uma road trip que ganha contornos especiais quando o carro é roubado e as jovens têm de ser acolhidas por uma família rom que as ajuda a ultrapassar os contratempos.

Mi Iubita, Mon Amour

A Céline Sciamma fez-me entender que posso seguir os meus desejos“, disse-nos a atriz há um ano em Paris, ainda antes de terminar as filmagens deste objeto que apelidava de “cinema guerrilha”. “Muitas vezes colocamos as pessoas em caixas, estilo: tu és atriz. Ela ajudou-me a sair dessa caixa, desses rótulos. De expor o que penso e quero mais vezes. Há muito que ambicionava experimentar a escrita e a realização, por isso ela ajudou-me a expandir [o meu mundo].

Um ano volvido, voltamos a encontrar-nos com Noémie Merlant, desta vez em Cannes, no famoso terraço da Unifrance, onde a jovem nos falou desta produção e como tentou com ela quebrar os estereótipos em relação à comunidade cigana. “Foi muito intenso o processo de filmagens, pois tinhamos apenas 15 dias para o fazer. Nada estava realmente preparado, mas isso foi intencional. O Gimi-Nicole Covaci (protagonista e argumentista ) deu o primeiro passo, a ideia. As atrizes do filme, que viajam comigo nesta despedida de solteira, são minhas amigas na vida real. O Gimi lançou a ideia de contar uma história de amor. Encontramo-nos com ele na Roménia. Escrevemos o guião e a espontaneidade da fabricação do texto trouxe uma energia particular para o tipo de filme que é: sobre amizades, amor, riscos e capacidade de reinvenção. (…) Era importante quebrar os clichés. É a família do Nino (Gimi-Nicole Covaci) que nos acolhe. As pessoas da comunidade rom são sempre apresentadas no cinema de uma certa maneira que era importante reverter. Nós começamos o filme com um certo desconfiar a esses roms, para depois desconstruir isso e construir aos poucos uma observação diferente sobre eles e sobre a amizade. Tudo até um ponto da história em que já só interessavam as emoções e não as pessoas e o que elas são.” 

Quanto à influência de Céline Sciamma nesse avançar para a carreira de realizadora, Merlant reforçou as palavras anteriormente ditas, mas acrescentou outro nome que a ajudou a dar o derradeiro passo: “A Céline Sciamma é alguém que nos impulsiona, que nos instiga a ousarmos, a nos exprimirmos. Ela é muito inspiradora como mulher. Mas existem outras  que me influenciaram. Por exemplo, quando vi o filme da Hafsia Herzi em Cannes (Tu mérites un amour, 2019) tive o clique final para elaborar o meu filme da maneira que o fiz. O seu filme deu-me a derradeira força para me lançar como realizadora.”

Luana Bajrami

The Hill Where the Lionesses Roar

Nomeada em 2019 ao César de Maior Promessa por “Retrato da Rapariga Em Chamas”,  Luana Bajrami leva-nos no seu “The Hill Where the Lionesses Roar” [presente na Quinzena dos Realizadores] ao Kosovo para contar a história de três raparigas presas a uma região com muito pouco para lhes oferecer. Estamos em pleno verão e todas se alimentam de sonhos improváveis ​​de ir para a universidade e a saírem dali de alguma forma, rejeitando as propostas que significam ficarem entregues aos papéis típicos das mulheres na sociedade local. 

Um filme de amadurecimento, vulgo coming-of-age, onde a busca da liberdade a qualquer custo coloca-as na rota do crime e de vários arrufos com as gentes da região. “O meu processo e ideia era transpor para o grande ecrã a energia desta juventude que quer simplesmente quebrar as regras do estabelecido. Queria mostrar mulheres poderosas e loucas. Acima de tudo, queria falar sobre a juventude de uma forma universal. O filme passa-se no Kosovo, mas podia ser em França. Muda o contexto, claro, mas os desejos são semelhantes. O desejo de liberdade e as lutas diárias por independência são as mesmas em todo o lado.”, explicou-nos Bajrami sobre o seu filme.

Já sobre a influência de Sciamma no avançar para o projeto, a jovem atriz e realizadora disse: “Durante as filmagens do Retrato da Rapariga Em Chamas, nunca disse a ninguém sobre o meu desejo de realizar um filme. Estava ali como atriz e só isso. Mas um dia a Céline veio até mim e perguntou-me se eu tinha a certeza se queria ser só atriz e se não tinha interesse em realizar. Fiquei surpreendida, tipo: como podia ela saber do meu interesse? Disse-me que devia tentar, arriscar e avançar para um projeto. Depois disso, ajudou-me bastante no guião. Enviei-lhe o primeiro rascunho e disse para ela me dizer o que achava. Se ela dissesse que era bom, avançaria. Se ela dissesse para eu esperar, esperaria. Ela acabou por dizer para eu avançar e assim foi. Do primeiro rascunho às filmagens foram apenas 5 meses. Foi de loucos”.

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