Segunda-feira, 20 Maio

Asghar Farhadi: “não existem heróis”

Todos conhecemos a complicada relação do Festival de Cannes com as plataformas de streaming, em particular a Netflix, por isso não foi de estranhar que mal surgisse nos créditos iniciais de “A Hero”, o novo filme de Asghar Farhadi, o logotipo da Amazon, um coro de apupos invadisse a sala Debussy onde o filme foi exibido no Festival de Cannes na passada quinta-feira.

Com distribuição assegurada nas salas de cinemas do nosso país, “A Hero” vai chegar à plataforma de streaming nos EUA, mas Farhadi confessou ao C7nema que este acordo implica uma passagem obrigatória e prioritária nas salas de cinema. 

O tema do streaming já tinha feito parte de uma conversa que tivemos com o realizador iraniano em 2017, aquando da sua passagem pelo FEST em Espinho. Aí, Farhadi dizia-nos que as plataformas estavam de certa forma a matar as salas de cinema e a mudar a forma como assistimos ao cinema. Quatro anos volvidos, confrontamos Farhadi com as suas palavras e tentamos perceber o que mudou (se é que mudou) na sua visão. “Continuo a achar que esta relação entre as plataformas de streaming e os cinemas devia ser regulada e devíamos dar muita atenção a isso, mas ao mesmo tempo temos de ver que o streaming oferece à economia a possibilidade de as famílias descobrirem filmes em conjunto”, disse-nos o realizador, acrescentando que continua a crer que a experiência de ver um filme em sala continua a ser superior a de ver em casa. “Para mim a experiência do streaming não tem a mesma força de uma descoberta num cinema. Em França existe a resistência dos cinemas, mas noutros países já começamos a observar o encerramento de salas devido ao poder aglomerador das audiências no streaming. Devemos ser muito cuidadosos quanto a isto e exigir um maior balanço entre as duas formas.

“A Hero”

Quanto a “A Hero” e o acordo com a Amazon, Farhadi relembrou que existem decisões tomadas que vão além daquilo que os realizadores podem exigir, mas vincou que as condições que exigiu para a estreia do seu filme foram respeitadas pelo streamer: “Fui muito claro na exposição dos meus desejos e a minha condição para esse acordo era que o filme não fosse exibido primeiro em streaming. Isso era o que estava sob o meu controle e foi isso que acordamos. A Amazon aceitou as minhas condições”.

No que propriamente diz respeito ao seu filme, que acabou de ganhar o Grande Prémio do Júri ex aequo com “Compartment 6”, Farhadi transporta o espectador numa travessia pela moral e ética no Irão atual através da história de um condenado que, durante uma saída precária da cadeia, descobre uma mala cheia de moedas de ouro. Quando ele decide devolver a mala ao seu dono, é instantaneamente transformado num herói local, despoletando a atenção da imprensa e das redes sociais, mas também do homem a quem pediu dinheiro emprestado no passado e a quem nunca pagou, o que o levaria a ser detido e encarcerado.

“A Hero”

É inevitável a imprensa dar destaque a estes ‘heróis’. A imprensa procura sempre estas peças quentes sustentadas pelas emoções, que atraem muitos espectadores. O que é interessante ver é o poder que é dado a estes indivíduos devido a um momento das suas vidas e analisar tudo o que vem atrás, nomeadamente as expetativas que são criadas em torno destas pessoas”, disse Farhadi. “Depois disso, espera-se que eles sejam heróis em todos os aspetos da sua vida e a todo o momento [o que não acontece de todo com o nosso protagonista]. É por isso que surge a queda logo após a ascensão meteórica à condição de herói e isso traz muito sofrimento a essas pessoas. Investiguei com alguns alunos meus de um workshop histórias assim, e essas pessoas mostravam-se muito desapontadas e até deprimidas. Inicialmente foi-lhes dado inesperadamente um estatuto de heróis e depois rapidamente tiraram-lhes esse título porque nem todos os aspectos da sua vida são heróicos. Esta experiência para eles foi muito violenta. A ideia neste ‘A Hero‘ é mostrar que na verdade não existem heróis e não devemos esperar que as pessoas sejam perfeitas em todos os aspectos das suas vidas, isto depois de serem amadas e consagradas por uma atitude isolada que tiveram no seu dia a dia.

A Hero é já um dos nomes que mais se fala na corrida ao Oscar de Melhor Filme Internacional na próxima edição dos prémios da Academia das Artes e Ciências Cinematográficas.

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