Nascido em Montevidéu, Manuel Nieto Zas faz parte de uma nova geração do cinema uruguaio. Em 2006, escreveu e realizou “La perrera”, Tiger Award no Festival de Cinema de Roterdão, e em 2013 assinou “El lugar del hijo”, Prémio FIPRESCI no Festival de Cinema de La Havana e exibição no Festival de Toronto.
A sua terceira longa-metragem, “El empleado y el patrón”, teve a sua estreia mundial na Quinzena dos Realizadores, marcando o regresso do cinema uruguaio à Croisette.
Coprodução internacional, o filme leva-nos ao interior rural do país e mostra a história de um patrão e de um empregado cuja relação é afetada por uma tragédia. O elenco é internacional e inclui os argentinos Nahuél Pérez Biscayart, Justina Bustos e Jean Pierre Noher, o brasileiro Roberto Oliveira e os uruguaios Cristian Borges, Fátima Quintanila e Carlos Lacuesta.
Tivemos a oportunidade de falar com o realizador sobre o seu filme, uma conversa via Zoom entre Lisboa e Barcelona, cidade onde o cineasta se encontrava para fazer a quarentena obrigatória após a sua entrada na Europa. Aqui ficam as palavras de Manuel Nieto Zas sobre o seu filme.
Os países sul-americanos e centro-americanos abordam muito a questão da luta de classes no seu cinema. Isso é algo que lhe interessa no seu cinema?
Tanto no Uruguai como nos países da América latina a diferença de classes está muito marcada. Mas a mim, mais que as questões sociais e políticas interessava-me falar da vida rural, da vida no campo e das personagens que aí encontramos. No mundo rural as diferenças de classe notam-se mais que nas cidades e por isso foi mais fácil para mim contrastar as duas personagens. O centro da minha inspiração e interesse neste filme não era fazer um discurso social, mas visitar o campo e lidar com temas desse mundo.
Mas o filme tem um lado muito humano. É possível existir uma amizade verdadeira entre um empregado e o empregador?
Não creio que eles sejam amigos, mas são boas pessoas. O patrão não é má pessoa, é um jovem patrão e ainda não sente bem essa posição. Chegou aí a partir do negócio do pai e comete erros. Os dois homens têm uma grande dose de irresponsabilidade, mas não são maus. Estão amadurecendo e entendendo o mundo dos negócios agroindustriais e as coisas que podem acontecer nesse mundo, como neste caso, um acidente. É uma situação que os tomou de surpresa.
Creio que também a nível sentimental, no que toca a empatia, existe uma amplificação disso no espectador pelo medo que o patrão tem pela saúde do seu filho. É um medo que os pais entendem perfeitamente, pois desde que nasce o teu filho tens sempre medo que lhe aconteça algo. É algo natural.
Por isso, a tragédia que ocorre ao empregado tem um grande impacto nele também. Ele tem aquela reação que considero tremendamente humana: tratar de outra pessoa e compreendê-la. Porém, e simultaneamente, o seu lugar na classe social e a sua família levam-no por outro caminho, o do interesse financeiro.
Isso nota-se particularmente na atitude da esposa do patrão, que a certo ponto pede o despedimento do empregado…
A mulher dele é muito dura. Ela é a realidade e diz o que todos estão a pensar: porque o marido não despede o empregado? Ela tem os pés na terra.
Também a mulher do empregado diz-lhe coisas muito duras. O filme conta as vicissitudes desta relação, mas a determinado momento as duas personagens principais articulam-se com alguma cumplicidade. Não existe um acordo, mas cumplicidade. As mulheres do filme são as que passam à frente disso e carregam a tensão dramática necessária para que a fita tenha força na sua ponta final e no desenlace.
Era importante criar uma ambiguidade nas personagens?
Sempre tive isso na cabeça e serviu-me de guia. As personagens não podiam ser só uma coisa, teriam de ser complexas, profundas e assim evitarem juízos: quer por parte do realizador, quer por parte da audiência, fugindo-se a uma verdade inequívoca.
Se damos apenas uma camada às personagens é muito fácil dizer que este é mau e este é bom. A vida é muito mais complexa que isso. As pessoas são muito mais complexas. Creio que a audiência cinematográfica deste filme vai ser maioritariamente uruguaia e muito pouca será do mundo rural. Estou ciente que a audiência primeiro vai-se identificar através do patrão, pois ele é mais parecido às pessoas que conhecem. É por aí que elas vão entrar no filme, mas como ambas as personagens são contraditórias e ambíguas a audiência vai mudar de opinião.
O patrão também vai trair a audiência, fazendo coisas que não estão corretas. Tenho a ideia que o espectador vai transferir a sua empatia para o empregado a certo ponto do filme. E depois este também os vai trair.
Esse ir e vir entre uma personagem e outra vai criar muitas questões ao espectador. E essas questões fazem também surgir várias emoções. Essas contradições é que fazem, para mim, o êxito do filme.
E como trabalhou a estética do filme, existe sempre uma imagem de realidade mas trabalhada e vincada? Quase como uma realidade mágica…
Contraluz. Quase todas as cenas foram filmadas a contraluz, para acentuar os contrastes que existiam no guião, no tema, e nas personagens da película.
O filme surgiu no Festival de San Sebastián como um WIP (Work In Progress). Agora está na Quinzena dos realizadores. E depois seguem-se outros festivais certamente.
É um filme mais ambicioso que os meus anteriores, até em termos de casting, pois tem nomes conhecidos. Os temas das relações laborais e extralaborais, de classes e do medo dos pais em relação à morte dos filhos são questões universais. É um filme amplo, que pode ver-se e entender-se em qualquer lugar.
Faz algum tempo que o Uruguai já não surgia em Cannes. Esta escolha traz-lhe alguma pressão?
Nenhuma pressão. Na verdade, é um orgulho. É fantástico que o festival nos tenha selecionado. Era algo com que sonhávamos desde o ano passado. Não sinto isso como pressão.
Este é um filme independente, sem pressões de distribuição, bilheteiras, de nada. Fizemos o filme como quisemos. Filmamos em um ano, em três etapas diferentes. Tínhamos que filmar realmente em espaços específicos, como zona de corridas de cavalo, durante o verão, na praia. Não recriamos nada.
Mesmo que não viéssemos a Cannes estaria muito feliz com o filme, pois era o que queria fazer.
E tem novos projetos para o futuro?
Tenho uma ideia. Chama-se “Los ladrones de ganado” e tem a ver com o roubo de gado, o mundo rural mas igualmente certos fenómenos que acontecem no campo e são ligados a extraterrestres. Há vários ladrões de gado e existem estes outros também. Mas não são extraterrestres que abduzem gado (risos). É outra coisa totalmente diferente. É uma ideia que estou a tratar de dar-lhe forma.
A minha ambição é depois de fazer este adaptar uma obra de Philip K Dick. É o meu sonho.