Domingo, 5 Maio

Da Tailândia à Alemanha, tudo cabe em Vila do Conde

O 29º Curtas Vila do Conde decorre de 16 a 25 de julho.

No programa do Curtas Vila do Conde estão representadas 46 nacionalidades. Só na Competição Internacional os passos são de gigante: do Canadá à Tailândia, da China à Alemanha, os quilómetros de distância entre países chegam aos cinco dígitos. Mais interessante do que isso é verificar quão distante ou próximo é o cinema destas geografias; quais as idiossincrasias e leitmotive que as distinguem ou relacionam. Pondo de parte os documentários e os filmes de animação, cujos estilos e procedimentos próprios baralham um pouco este exercício, vale a pena olhar com atenção para a dúzia de filmes de ficção que compõem a seleção oficial do festival.

Cinema Europeu (Parte I)

Comecemos pelo cinema que nos é mais próximo e familiar, e que é também aquele com maior presença na Competição Internacional: o de França.

O amor à primeira vista e o amor impedido, construtos tipicamente românticos, e também por isso tipicamente franceses, são o que dá azo à história de “A Questo Punto”, em que dois jovens adultos se conhecem numa festa e passam a noite, madrugada adentro, a vaguear pelas ruas de Paris, como se numa serenata ambulante em que ambos vão lenta mas seguramente apaixonando-se um pelo outro. Este é um filme que só resulta porque os dois atores que dão corpo a Isaac e Ava (dois nomes hebraicos bastante sugestivos) são carismáticos, naturais e conseguem manter uma clara química à frente da câmara. Num curto espaço de tempo é totalmente credível o magnetismo que se gera entre as duas personagens, e essa é a condição fundamental para que o impacto do filme seja sentido. Mas não entremos em maiores pormenores, porque este é um daqueles casos em que quanto menos o espetador sabe acerca do enredo, mais desfrutará dos seus avanços. Em todo o caso, o resultado é ressonante e faz desta curta um dos “dark horses” em competição.

Já “Le Roi David”, outra produção francesa, vira do avesso este arquétipo de dois jovens bem-sucedidos que se apaixonam, retratando Shana, uma jovem perdida que não consegue esquecer o ex-parceiro que a violentou. Incapaz de cumprir promessas, compromissos ou responsabilidades, e por isso desempregada e afastada da mãe, Shana é uma anti-heroína que se mantém num lugar ambivalente aos olhos do espetador, entre a empatia, a frustração e o desprezo. O registo do filme inspira-se no realismo social dos irmãos Dardenne, mas com uma tonalidade emocional diferente, movendo-se pelos bairros da periferia parisiense que já fazem parte do imaginário do cinema francês contemporâneo, a partir de filmes como “Bande de Filles” (2014) ou “Les Misérables” (2019).

O elemento que destaca este filme de Lila Pinell é uma tentativa estilística que passa por criar pequenos intervalos na narrativa em que, primeiro sem o reconhecermos, se interpõem imagens de David, o ex-parceiro de Shana de quem ela continua a sentir falta. São imagens que ilustram fantasias, memórias, e ideações de Shana, e que brincam com o título do filme e com as associações históricas que ele suscita.

De forma semelhante, “Delenda Carthago”, terceira curta vinda de França, retira o seu título de uma famosa frase em Latim que corresponde a uma declaração de guerra (“Delenda est Carthago” significa em português “Cartago deve ser destruída”). Esta é talvez uma das primeiras obras a aproveitar a atual pandemia para contar uma história original e curiosa que não cai em demasiados lugares-comuns. As imagens de uma cidade europeia deserta – que por isso tem o ar apocalíptico evocado pelo título – são o mote para os manequins das montras ganharem vida e a saúde mental dos habitantes cair a pique pela confusão que essa visão gera. Guillaume Orignac realiza a curta com humor e a dose certa de absurdo, embora, e ao contrário das curtas anteriores, as atuações deixem a desejar.

O mesmo se pode dizer da curta de Noé Debré, o coguionista da Palme d’Or de 2015 “Dheepan”, que está por detrás de “On N’est Pas Animaux”. Nesta curta parodia-se o clima atual em torno do politicamente correto, da sexualidade feminina, da masculinidade, e do movimento feminista, mas infelizmente a comédia cai por terra sem sucesso e no grupo de atores transparece o amadorismo.  

Viajando agora para o país vizinho, de Espanha vem uma curta cujas preocupações ecoam as de “Le Roi David”. Falamos de “Farrucas”, um belo filme de Ian de la Rosa em que quatro raparigas de origem marroquina que habitam no bairro social El Puche, em Almería, se reúnem para celebrar os 18 anos de uma delas. Num ambiente de pobreza mas cheio de amizade e sonhos de juventude, as raparigas discutem as suas dificuldades escolares, ambições e medos quanto ao futuro, criando um testemunho das suas vivências cheio de humor e emoção genuína. A autenticidade das atuações de Hadoum, Fátima, Sheima e Sokayna, bem como a temática assente na precariedade e na dificuldade em enfrentar o futuro (o título alude a uma expressão árabe que designa aquele que distingue a verdade da mentira), aproximam este filme ao de Lila Pinell, com o qual faz um ótimo par.

A completar estas temáticas está ainda o filme da realizadora grega Evi Kalogiropoulou, “Motorway 65”, nome da ponte que une duas áreas geográficas que coexistem em tensão devido a um conflito enraizado nas diferenças culturais, sociais e de género entre as suas comunidades. De um lado, imigrantes provenientes de Ponto, uma região na costa meridional do mar Negro; do outro, também imigrantes, mas de origens muito diversas. A partir da relação entre dois irmãos, o filme retrata uma realidade social plena de dificuldades geradas pela obsolescência progressiva da indústria da zona de Eleusis-Aspropyrgos, nos arredores de Atenas. Sima e Isaac vivem em conflito, tal como as duas comunidades que nunca se cruzam, mantendo-se isoladas em cada lado da ponte.

Cinema Europeu (Parte II)

O contraste destas seis produções com as restantes curtas europeias é assinalável. Da cultura românica passamos agora para a germânica, com três filmes vindos da Alemanha e da Bélgica cujas temáticas, sensibilidades e estilos totalmente distintos dos anteriores representam bem esta divisão.

Em “Das Massaker von Anröchte”, Hannah Dörr filma um conjunto de eventos e personagens absurdas que são pretexto para uma reflexão filosófica curiosíssima. Quando um grupo de cavaleiros hunos, armados com sabres, perpetram um massacre sem qualquer razão aparente, decapitando pessoas ao acaso, o inspetor Konka chega à cidade para resolver o mistério, acompanhado pelo seu assistente Walter, espécie de filósofo clandestino que reflete sobre a condição humana enquanto vagueia pelas cinzentas ruas de Anröchte. Aparentemente parada nos anos 1970, esta pequena cidade é retratada na sua melancolia com bastante humor negro à mistura, sendo o palco perfeito deste universo tragicómico em que a arbitrariedade da maldade só pode ser solucionada com a arbitrariedade da bondade. Se o crime foi aleatório, não há investigação possível que consiga fazer sentido do sucedido; o azar das vítimas só pode ser equilibrado com a pura sorte dos investigadores. Assim, numa cena hilariante mas sempre estranhamente filosófica, o mistério parece ficar resolvido, e os investigadores logo partem, num final que é tão memorável como o resto desta pequena pérola que, não obstante a sua originalidade, tem um cunho totalmente alemão.

Os dois filmes belgas, “L’Enfant Salamandre” e “Zonder Meer” partilham uma estética silenciosa e contemplativa em torno de personagens juvenis. O primeiro segue Florian, um rapaz de 15 anos que julga conseguir comunicar com os mortos a partir do fogo e que anseia por poder reunir-se com o pai, embora esses seus interesses o tornem o pequeno monstro da aldeia em que vive. O filme acabou de ganhar, na passada semana, o primeiro prémio da competição Cinéfondation em Cannes, uma distinção merecida por Théo Dégen que tem nesta sua curta de fim de estudos uma obra poética e hipnotizante que trata do luto e da adolescência com um olhar refrescante e impressionante.

Zonder Meer”, por sua vez, passa-se num parque de campismo durante o verão, onde Lucie, uma miúda de cinco anos que ali passa férias com os irmãos e os pais, tenta fazer sentido daquilo que se está a passar à sua volta. Sem nunca se deslocar de Lucie, cuja comunicação ao longo do filme é quase sempre não-verbal, a câmara investiga como esta criança lida com o desaparecimento de um rapaz que possivelmente se afogou no lago perto do parque de campismo.

De forma subtil e sensível, a realizadora Meltse Van Coillie mostra-nos como as crianças são hiper-vigilantes e atentas, detendo uma sabedoria misteriosa que as faz olhar para o mundo com uns olhos lúcidos e empáticos. A pequena Lucie apercebe-se da alteração do comportamento dos adultos à sua volta, vendo a alegria das férias a ser substituída pela preocupação e o choque, que permanece sempre no mundo adulto fora-de-campo ou nas margens da imagem. Silenciosa e observadora, tal como a câmara, Lucie tenta compreender o que é a morte, quanto tempo consegue aguentar sem respirar e como deve ser estar morto. Uma perda da inocência enternecedora.

Cinema Asiático

Voando agora para outro continente, o voo que se faz é também um de referências culturais que se espelham em filmes com escolhas estilísticas, influências e estruturas fílmicas bem próprias.

Aninsri Daeng” (“Red Aninsri; or, Tiptoeing on the Still Trembling Berlin Wall”) é um filme tailandês que opera como uma homenagem às rocambolescas narrativas policiais e de espionagem muito populares no sudeste asiático durante a Guerra Fria. No final dos anos 1970, uma legislação tailandesa de cariz protecionista promoveu um aumento significativo de filmes que tentavam copiar os géneros mais populares de Hollywood, mas que eram arrasados pela crítica. É a esse género que a curta de Ratchapoom Boonbunchachoke rouba o seu estilo, que se move entre anacronismos, um guarda-roupa fantástico, néones por toda a parte e uma série de características típicas do antigo cinema tailandês, como a dobragem das vozes, o aspect ratio (proporção da tela) 4:3, e os cantos da imagens arredondados.

O enredo é também inspirado no clima de vigilância e suspeita dessa época, em que o Estado incumbe uma misteriosa femme fatale transgénero de se mascarar como um homem homossexual para seduzir Jit, um estudante ativista considerado inimigo da nação. Numa missão de papéis duplos que joga com a lealdade, os papéis de género, a sexualidade e a intimidade, a espiã acaba por se apaixonar pelo jovem. Este é um filme imprevisível, repleto de imagens marcantes e que coloca Boonbunchachoke no mapa do cinema tai.

Já Zhang Dalei representa o cinema chinês com o seu “Xia Wu Guo Qu Le Yi Ban” (“Day Is Done”), um retrato sereno de uma família multigeracional que funciona como uma alegoria das diferenças entre a cultura tradicional chinesa e a sua versão mais contemporânea aberta ao estrangeiro. A família é, na verdade, a mesma que já protagonizava a primeira longa-metragem do realizador, “Ba yue” (“The Summer Is Gone”, 2016), mas com idades mais avançadas. A curta segue um dia em que a família vai visitar o avô a sua casa, representando as tarefas triviais do dia-a-dia, as conversas e refeições que fazem. A câmara observa esta casa oriental como um gato que espreita por entre cortinas e janelas, mantendo sempre uma certa distância apesar da sua curiosidade.

É o contraste entre o solitário avô e o seu neto, que está prestes a partir para estudar no estrangeiro, que é o caroço emocional do filme, acentuado ainda pelos breves momentos de música em que se ouve a extraordinária flauta solitária de Bach (Partita em Lá Menor para Flauta, BWM 1013). O filme fez parte da seleção oficial do Festival de Berlim e é, em toda a sua simplicidade, uma grande curta, que evoca a calma contemplativa de Edward Yang ou Kim Ki-duk.

Cinema Norte-Americano

Chegamos finalmente ao continente americano, de onde vêm duas curtas assinadas por nomes provavelmente mais conhecidos por estas bandas. Em destaque está o filme de Zach Woods, ator mais conhecido por participar em séries como “Silicon Valley” e “The Office”, que assina “David”, filme que integrou o Festival de Cannes e que conta com outro nome da comédia, Will Ferrell. O título parte do nome que tanto o filho como o paciente da personagem de Ferrell possuem, e que têm um encontro espalhafatoso no seu consultório de psiquiatria.

Entre um David com ideação suicida e um David que deseja a atenção e aprovação do pai, Ferrell quase não consegue conter o riso, e o resultado é um filme tragicómico inesperadamente hilariante. Os movimentos certeiros entre o drama e a comédia fazem lembrar o trabalho de Kenneth Lonergan (“Manchester by the Sea”, “Margaret”), o que é talvez o maior elogio que se possa fazer a este pequeno episódio que revela que Woods talvez tenha carreira também atrás da câmara. O seu comentário sobre a psicologização da sociedade e os papéis inconstantes de paciente e terapeuta dão estofo suficiente para o que, de resto, é uma história bizarra mas realista.

O outro nome do cinema norte-americano presente em Vila do Conde é Guy Maddin, o génio canadiano das curtas-metragens, que colabora com os irmãos Galen e Evan Johnson para celebrar o centenário de Federico Fellini através de um ensaio poético que, de certa forma, une os universos dos dois cineastas a partir daquilo que poderão ter em comum: uma visão do cinema como uma arte que convoca a fantasia, os sonhos, as memórias e os fantasmas. Em “The Rabbit Hunters” vemos Isabella Rossellini (colaboradora frequente de Maddin) a interpretar o cineasta italiano (ou uma espécie de amálgama entre ele e a sua mulher e musa, Giulietta Masina) e a vaguear por projeções dos seus próprios sonhos e memórias.

Inicialmente, os três realizadores desejavam recrear sonhos retirados diretamente dos diários de Fellini, mas os direitos de autor impediram-nos. Como alternativa, curaram os seus próprios sonhos de acordo com os temas presentes nos de Fellini, o que possibilitou uma aproximação ainda maior entre o imaginário dos autores. A ansiedade, as estreias de filmes e o sexo foram alguns desses temas que se sobrepunham e que agora recheiam esta curta excêntrica e surreal, como é próprio do cinema de Fellini e de Maddin.

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