Sábado, 18 Maio

Em Vila do Conde há futebol, feminismo e balões estratosféricos

O 29º Curtas Vila do Conde decorre de 16 a 25 de julho.

São cerca de uma dezena os documentários que integram a Competição Internacional do Curtas Vila do Conde. Designação ela própria problemática, o cinema documental abarca uma série de estilos (entre eles a animação), abordagens e procedimentos sob o chavão das histórias verídicas e da não-ficção. Mas, como prova a seleção de obras que este ano estão em exibição no festival, o documentário é muito mais que isso e dificilmente definível.

Olhemos, por exemplo, para o objeto curiosíssimo que é “A People’s Radio – Ballads From A Wooded Country”, filme vindo da Finlândia e que faz um retrato original e idiossincrático desse país ou, mais concretamente, das suas gentes. O documentário recolhe testemunhos de um programa de rádio apropriadamente designado “People’s Radio”, que compila todo o tipo de contribuições de ouvintes que ligam livremente para os estúdios. Lamentos, críticas aos vizinhos, choros, preocupações, medos, observações, poemas, anedotas e até covers inusitadas de canções conhecidas vão sendo transmitidas pela estação. Aqui, essas vozes da população finlandesa são acompanhadas de imagens da paisagem do país, captadas como que em pequenos segmentos que servem de postais animados da Finlândia. O resultado é um panorama desta sociedade nos dias que correm, cheio de humor e humanidade, em que ressalta a personalidade dos habitantes e o seu maior (ou menor…) desejo de conexão humana.

Um objeto fílmico com algumas afinidades com este, mas filmado mais a sul, é o projeto de Alice Rohrwacher, “Quattro Strade”.A consagrada realizadora italiana, cuja última longa-metragem foi o magistral “Lazzaro Felice” (2018), percorre as quatro estradas que interligam a sua casa no campo às outras habitações mais próximas, num exercício que pretende jogar com o distanciamento social e o contacto entre vizinhos. A estética desta curta, gravada com uma velha câmara de 16mm, uma lente de zoom e uns metros de película fora da validade, relembra os home videos dos anos 1990, apelando à nostalgia. A banda sonora, repleta de sons fantasiosos, infantis e cheios de magia, complementa perfeitamente as imagens, criando um certo encantamento. Há, no entanto, uma fragilidade neste olhar sobre o mundo rural italiano, sugerindo como o distanciamento a que a pandemia nos obrigou (e ainda obriga) não foi apenas um distanciamento físico – designação que deveria ter sido sempre a mais utilizada – mas propriamente um distanciamento social.

O que é mais importante neste “Quattro Strade”, ainda assim, é que a pandemia surge como um mero percalço pontual na vida destes vizinhos. Rohrwacher contrasta o acidente histórico que é este evento com a própria forma de vida isolada que as pessoas no campo já levam no dia-a-dia, uma espécie de isolamento intencional e voluntário, que nos obriga a pensar sobre as relações entre humanos mas também entre estes e o seu meio ambiente.

De uma perspetiva totalmente diferente, também o trabalho de Isabelle Prim em “Condition d’Élévation” nos fala da estranha relação dos humanos com o espaço em que vivem. Neste filme, é aproveitado o interessantíssimo arquivo de imagens do Observatório do Centro Nacional de Estudos Espaciais de França para contar uma história que nada tem de verídico (a não ser o facto de que o espaço e o voo continuam a ser obsessões humanas). Por um lado, vemos uma equipa de televisão a fazer uma reportagem sobre uma adolescente que sonha tornar-se cientista e que detém os segredos para fazer chegar a grandes altitudes balões estratosféricos. Por outro, ouvimos a narração da própria rapariga que nos conta as suas expetativas e desejos em torno das suas experiências científicas no ar. Num registo que é misterioso e poético, sem perder o que de fantasioso e quase infantil tem esta história, a curta joga com linhas de tempo em contraciclo sem nunca nos deixar distinguir completamente o que é verdade e o que é mentira.

É justamente na luta pela verdade que Bill Morrison realizou “Buried News”, uma curta que apresenta uma série de reportagens filmadas entre 1917 e 1920 cujas bobines estiveram enterradas durante quase cinco décadas, até serem descobertas por uma equipa de construtores (uma descoberta que ficou conhecida como a Dawson Film Find). Entre as mais de 500 bobines de filme que foram encontradas e restauradas, cerca de uma centena eram cinejornais, cada um contendo meia dúzia de notícias de um minuto cada. O realizador selecionou quatro dessas reportagens noticiosas que tinham como tema assuntos raciais, de modo a revelar como há já 100 anos que a etnia é usada nos EUA para dividir as populações por motivos políticos e económicos.

Em conjunto, estas imagens julgadas perdidas para sempre têm um impacto brutal, não só por fazerem ressuscitar uma série de eventos que assim ganham uma nova tangibilidade (nomeadamente motins racistas e manifestações de ativistas afro-americanos), mas acima de tudo pela proximidade que demonstram aos eventos da História recente dos EUA, em que os conflitos raciais e a luta pela igualdade continuam a ser assuntos quentes (basta lembrar a importância do movimento Black Lives Matter). O filme termina com imagens do ataque ao Capitólio no passado 6 de janeiro, uma invasão ao centro da democracia norte-americana que chocou o mundo. É impressionante e arrepiante ver de forma tão clara os ciclos repetitivos da História e como a desinformação, a manipulação da opinião pública, o medo e a violência continuam a ser instrumentos políticos poderosos.

Também política é a mensagem de “Dans le Silence d’une Mer Abyssale”, em que a realizadora Juliette Klinke nos convida a conhecer imagens e mulheres esquecidas pela História. Toda a curta se constrói a partir de fragmentos de filmes produzidos ou realizados por mulheres, destacando os seus nomes pelo desempenho importante que tiveram em diversos momentos da indústria do cinema. O objetivo é, de facto, não deixar cair no esquecimento silencioso de um “mar abissal” o papel destas realizadoras, produtoras, atrizes e guionistas. Contudo, o filme não se trata apenas de uma justa enumeração de contributos no feminino, mas é também uma reflexão sobre que vozes são repercutidas e que vozes são caladas, que imagens fazem parte da construção das nossas sensibilidades e culturas e que imagens são ocultadas. Enfim, a obra problematiza o processo de elaboração da memória coletiva e da construção da História, sempre com uma narração envolvente e um fluxo de imagens cativante.

Embora com uma temática totalmente diferente, a curta-metragem de Roman Hodel, “The Game”, também se interroga sobre o que nos é dado a ver e quem ignoramos nas imagens que observamos. Neste caso, é nos mostrado um jogo de futebol como raramente o vemos: ao contrário do que é comum, a bola e os jogadores deixam de ser o centro das atenções e é o árbitro do jogo o foco da câmara. O protagonista é Fedayi San, um árbitro internacional da FIFA, que ao longo de um jogo de futebol da liga profissional suíça tem de lidar com uma série de fatores que o colocam sob intensa pressão. O comportamento dos jogadores, o diálogo constante com os árbitros assistentes e com o VAR, bem como o ruído e a contestação dos adeptos são alguns dos aspetos que tornam esta profissão, e este filme, alucinante e cheio de tensão.

Praticamente sem diálogos, mas montada com grande mestria, a curta não só transmite esse ritmo e stress próprio de um jogo de futebol, como coloca em primeiro plano o lado humano do árbitro, as suas dúvidas e preocupações, de uma perspetiva íntima cuja raridade torna esta obra um objeto surpreendente. Estreado no Festival de Veneza no ano passado, “The Game” brinca com as nossas expetativas e preconceitos, conseguindo de forma inteligente traçar um retrato equilibrado desta figura cultural que tantas vezes negligenciamos.

Finalmente, destaca-se ainda “VO” (sigla de “vehicle operator”), uma curta de Nicolas Gourault sobre carros autodirigíveis que funciona como uma investigação ao que ocorreu de errado quando, em 2018, um dos testes a esta nova tecnologia acabou em tragédia: um acidente fatal entre um carro que se conduzia a si próprio e um peão. Tratar-se-ia de um erro de supervisão humana, uma falha da inteligência artificial, ou um misto dos dois? De forma metódica, o realizador apresenta diferentes hipóteses, recorrendo a testemunhos de pessoas envolvidas, clips noticiosos e simulações gráficas do sistema de visualização e interpretação do mundo pela inteligência artificial. Sob uma atmosfera de incerteza, populada por estranhas visualizações de data que nos fazem entrar no frio mundo digital, o filme é uma incursão neste novo mundo em que as máquinas são cada vez mais verdadeiros objetos vivos.

Entre as curtas documentais que fazem parte da Competição Internacional do Curtas encontramos ainda “A Love Song In Spanish”, obra de Ana Elena Tejera que lança um olhar poético e melancólico aos destroços que a ditadura dos anos 1980 no Panamá deixou nos lares de cada família, alguns deles também verdadeiras ditaduras. A opressão e repressão do regime autoritário e dos homens do exército paira como um fantasma e sob a forma do silêncio em todas as imagens. Já em “Los Ladrillos”, Tito Montero faz uma viagem aos EUA e reflete sobre a luta dos trabalhadores sob o mote do 1º de maio, enquanto em “Night For Day” ouvimos dois depoimentos que, sob a ilusão do filme, parecem dialogar entre si: a médica e escritora Isabel do Carmo recorda o seu tempo como fundadora das Brigadas Revolucionárias em 1970, ao mesmo tempo que dois jovens que lideram uma start-up trocam ideias sobre a tecnologia de IA de reconhecimento de imagens em movimento.

Por último, Barbara Wagner e Benjamin de Burca filmam uma visita a duas casas-museu, palacetes de outros tempos que agora funcionam como monumentos à ostentação do passado e como símbolos da preservação do status quo. As visitas começam de forma convencional, mas aos poucos os visitantes revelam-se afinal intérpretes de diferentes instrumentos musicais, cuja música vai simbolicamente invadindo e apoderando-se destes espaços, num esforço contra a ideologia colonialista. “One Hundred Steps” é gravado a preto-e-branco e tem uma qualidade hipnotizante.

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