Sexta-feira, 17 Maio

«Maya» por Jorge Pereira

Maya marca o regresso de Mia Hansen-Løve ao cinema

Um primeiro plano de um corpo masculino nu com uma nódoa negra na zona abdominal dá o mote para um filme onde a francesa Mia-Hansen Love segue os trilhos de um repórter de guerra (Roman Kolinka em permanente melancolia) que após ser libertado do cativeiro jihadista regressa a casa, isto em transição para uma Índia onde tenta refletir e lidar com os factos do presente e do passado para dar um passo em frente ou atrás no seu futuro.

É na mudança (psicológica) e na transição para um regresso à normalidade, sem marcas de uma verdadeira evasão ou escape, que este Maya tenta trilhar, sempre num percurso frágil de descoberta, onde tudo é colocado em causa, mas tudo acaba por continuar dentro da normalidade. O trauma e o próprio cativeiro, não são os temas fulcrais per se, mas antes o trânsito entre estados, novamente com um cheiro a fracasso pelo meio e uma incapacidade de mudarmos aquilo que não depende de nós (o quem somos), marcas da cineasta que já vêm desde O Pai dos Meus Filhos (uma falência abala a confiança de um homem e põe em risco toda a sua relação com a família) ou Éden, onde o desencanto segue-se depois de um Dj atingir o Éden na cultura eletrónica.

E nesse corpo nú inicial, Mia mostra logo que não seguirá terrenos eróticos, sensuais ou de romance, destacando-se sim o enorme hematoma que nos assombra a nós e ao protagonista, Gabriel, assumindo assim essa mancha temporária em processo de cura uma forma alegórica para retratar o próprio estado mental do nosso protagonista, vincado pelas más memórias, mas não inteiramente em sangue vivo ao nível de o incapacitar de seguir no mesmo caminho.

Mais à frente, é mesmo Gabriel que vai resistir inicialmente às investidas da jovem Maya que dá título ao filme, a filha do seu padrinho que o vai acompanhar por uma Goa também ela em transição (entre o velho e o novo mundo). É aí que ele procura regressar à casa da sua infância, “assombrada” pelo abandono da mãe em tenra idade que também lhe deixou um hematoma na alma, e agora fustigada por especuladores imobiliários que urgem pela mudança e deixam escoriações na paisagem.

O filme aborda igualmente, e subtilmente, o próprio desenraizamento das personagens, como a nossa Maya, uma londrina que ali agora vive à sombra do pai e da madrasta num hotel com os dias contados; do próprio Gabriel, filho de um diplomata que foi parando em todos os locais que chamou de casa sem fazer de um deles um verdadeiro poiso; e da própria Goa, presa entre a cultura indiana com um ligeiro toque português (veja-se as alcunhas dos especuladores imobiliários) e a invasão turística estrangeira, onde até pequenas localidades têm a alcunha de pequena Rússia (Morjim e Arambol são centros nevrálgicos desse turismo massificado).

Esse desenraizamento (a visita que o duo faz a Hampi é retratada como a de qualquer outro turista) e essa necessidade de se manter em permanente movimento, manter-se vivo, sem nunca realmente sair do mesmo estado mental, vão definir o filme e o trabalho de Mia Hansen-Love, que mais uma vez produz uma pequena pérola sem toques espampanantes de luxúria. É sim um pequeno e simples filme, algo muito difícil de fazer numa área onde fugir a arquétipos e clichés deve ser considerado uma tarefa hercúlea. E aí reside a complexidade do trabalho de Mia, em quase desglamourizar de exotismo o que por nascença e pelo estado ainda puro da sua natureza o é.


Jorge Pereira

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