Sexta-feira, 17 Maio

«Holy Motors» por Roni Nunes

Houve tempos em que a arte de perturbar a burguesia alcançava resultados bem palpáveis: os museus eram encerrados, os artistas apedrejados, os conservadores ficavam furiosos e as autoridades governamentais punham a máquina judicial a operar. Nos nossos tempos de tolerância pachorrenta o alcance não é o mesmo, mas o significado sim: continuamos a viver tempos farisaicos e estes acompanharão a humanidade até o dia do apocalipse. Pelo menos parece ser esse um dos discursos subliminares da obra de Leos Carax.

“Holy Motors” começa de forma onírica numa sala de cinema, confrontando o público com a sua própria imagem de espectador. A partir daí, assiste-se as deambulações de um “ator”, a trabalhar para um muito misterioso empregador, que segue numa limusina por Paris a encarnar as mais diversos personagens nas mais variadas (e algumas bem bizarras…) situações. 

É um filme sobre cinema, sobre arte e representação e onde o discurso incorpora, por fim, a própria transitoriedade da vida e a dura realidade da morte. Mas não se espera daí uma conclusão tradicionalmente séria ou lógica: o final é tão deliciosamente absurdo quanto plausível. 

Entre os múltiplos caminhos de “Holy Motors”, o realizador estabelece uma ponte espiritual com “Entr’Acte”, um dos mais célebres testemunhos da vanguarda cinematográfica dos anos 20. Neste exemplar dadaísta, René Clair implodia com o próprio discurso narrativo ao empregar diversos mecanismos linguísticos da altura para mostrar a história da perseguição a um prestidigitador, que no final do filme faz desaparecer todas as personagens e a seguir a ele próprio…

A aridez “dadaísta” deste filme não é certamente para todos, mas é útil dizer que numa sala quase lotada apenas um espectador saiu a meio. No fundo, todo este aparato extremamente bem produzido, com uma direção de arte e fotografia luminosa e realizado com uma eficácia ímpar, não oferece grandes meios-termos: amor ou ódio, ambos profundos…

O Melhor: isto é cinema verdadeiramente transgressivo e há poucos que o fazem
O Pior: por vezes corre o risco de se tornar uma coleção de “curtas-metragens” algo esquemática
 
 
 Roni Nunes
 

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