O britânico Terence Davies ganhou há muito o estatuto de cineasta peculiar e lírico, nostálgico e arrebatado pela arte e, naturalmente, galante pela sua própria homossexualidade. “Benediction” prolonga o seu estilo num saudado regresso a San Sebastián, onde já foi feliz quando apresentou igualmente a concurso “Sunset Song” (2015) e “O Profundo Mar Azul” (2011). Desta feita com o registo biográfico do poeta aristocrata Siegfried Sassoon e a sua tumultuosa vida amorosa, defendida pela composição competente de Jack Lowden (e Peter Capaldi numa versão mais idosa), ilustrando as guerras amorosas digladiadas com farpas de diálogos eloquentes, devidamente servidas por vinheta fílmicas de um precioso tempo encapsulado.

Davies é assim, gosta de exprimir no seu cinema a nostalgia do tempo, e através dele reflectindo também o seu. Apesar de ter nascido em 1945, foram os anos 50 que o marcaram. Pelo menos, é esse período que gosta de revisitar. Como nos retratos de família de Liverpool “Vozes Distantes, Vidas Suspensas” (1988) e “Aqueles Longos Dias” (1992), nas memórias de “A Bíblia de Neon” (1995) ou mesmo nas narrativas documentais, como “Of Time and the City” (2008).

Mesmo que não o faça diretamente, porventura por ser demasiado púdico e auto-consciente, é sempre o seu ADN que está lá, mesmo quando evoca o perfil biográfico de outros. Tal como sucedeu com a poetisa americana Emily Dickinson, em “A Quiet Passion” (2016) ou agora em “Benediction“, igualmente exibido na competição para a Concha de Ouro.

EmBenedictionrecuperam-se imagens de arquivo de 1914, aproximando-nos ao horror da guerra e à exaltação dilacerada do tenente Siegried Sassoon. Ele que usará a sua poética sobre um conflito sem sentido e onde se afirmará mais “pró-humano” do que patriótico. Seria mesmo uma carta dirigida ao poder britânico que o deveria levar a tribunal marcial, não fosse a influência familiar a retirar-lhe essa ousadia e antes reconduzindo-o a um hospital psiquiátrico onde, mais tarde, o poeta descobrira a sua sexualidade mundana.

O filme acompanha a sua vida e os diversos cruzamentos com várias personalidades mundanas da altura, como o multifacetado compositor e actor, e mesmo realizador galês Ivor Novello (Jeremy Irvine) – por exemplo, é dele o romance que deu origem ao famoso filme de Hitchcock, “The Lodger“/”O Inquilino Sinistro” (1927), interpretado pelo próprio Novello. Ou ainda o romance com o decadente Stephen Tennant (Calam Lynch).

Curioso (e igualmente tortuoso) é o percurso do oficial pacifista a poeta dilacerante, de amante diletante, antes de capitular e converter-se ao catolicismo e ao casamento com Hester Gatty (Kate Phillips e Gemma Jones), como forma de redenção e projeção temporal sob a forma de uma normalidade artificial. Em particular, sublinhada pelo desentendimento com o filho George, representando um presente ou futuro que Siegried parece enjeitar.

É precisamente entre uma peça de Stravinski, “A Sagração da Primavera“, em 1914, e o musical “Stop the World“, de 1961, ambas assistidas por Sassoon, que se desenrola o tempo de Benediction, como se ilustrasse o espetáculo da vida e de um tempo que não volta. Assim é também o cinema de Terence Davies.

Pontuação Geral
Paulo Portugal
Jorge Pereira Rosa
benediction-terence-davies-filma-a-redencao-eloquente-e-pacifista-do-poeta-gay-siefried-sassoonO espetáculo da vida e de um tempo que não volta.