Sábado, 18 Maio

De “O Ódio” a “Os Miseráveis”: subúrbios de Paris a ferro e fogo

O drama dos subúrbios e a violência policial são o foco central desta "adaptação" moderna de Os Miseráveis

6 de abril de 1993. O jovem Makomé M’Bowolé é assassinado à queima-roupa com uma bala na cabeça pelo inspetor Pascal Compain na esquadra de Grandes-Carrières, no 18 º “arrondissement” de Paris. O agente declara ter atirado por acidente, enquanto tentava intimidar o suspeito para obter uma confissão, pensando que a arma estava descarregada. O caso e os três dias de tumultos que se seguiram, com saques e confrontos entre jovens e forças policiais no coração de Paris, vão inspirar Mathieu Kassovitz a realizar do seu filme La Haine” (O Ódio), lançado em 1995.

Jusqu’ici tout va bien

Polémico desde a sua conceção, La Haine” (1995) retrata o fenómeno da violência urbana, usando os enormes motins que se seguem após um jovem ter sido espancado pela polícia. Entre a vida e a morte, esse jovem é o ponto de partida para uma eventual resposta contra a policia por parte de 3 amigos: Vinz (Vincent Cassel), Said (Saïd Taghmaoui) e Hubert (Hubert Koundé). O primeiro encontrou uma arma e jura assassinar um policia caso o jovem espancado morra. Vagueando por uma Paris entregue ao caos, o trio de amigos visita uma galeria, um traficante, cruza-se com Skinheads e perde o comboio. Tudo numa única noite que culminará em tragédia…

O nascimento do Kourtrajmé

Em 1994 nasce um coletivo de artistas que trabalham no campo audiovisual, estando na sua fundação Kim Chapiron, Toumani Sangaré e Romain Gavras. Chapiron é claramente influenciado pelo seu “vizinho”, Mathieu Kassovitz, que apresenta ao grupo um dos rostos que os vai apadrinhar, Vincent Cassel. 

O nome de Ladj Ly está também no grupo, explicando-nos o cineasta que as coisas não mudaram muito no espírito do coletivo desde a fundação. “Continua a ser um grupo sem fins lucrativos e uma associação de amigos. As pessoas pensam que aquilo é uma multinacional, com milhões de dólares a circular [risos] É um grupo de amigos, mesmo tendo crescido, com a escola de cinema que agora existe e com o desenvolvimento em alguns países africanos.” E embora Kim Chapiron, Toumani Sangaré e Romain Gavras tenham seguido trabalhos a solo de grande envergadura no cinema, Ly afirmou ao C7nema que “a energia inicial” do grupo mantém-se até hoje.

2005, a história repete-se

27 de outubro de 2005. Durante uma perseguição pela polícia, três jovens entraram numa subestação eléctrica fechada. Bouna Traoré e Zyed Benna morreram eletrocutados. O terceiro, Muhittin Altun, sofre queimaduras graves. O caso gerou indignação e levou a protestos nas ruas contra a violência policial. A revolta espalhou-se rapidamente pela periferia de Paris, mas também a outras cidades de França. Os distúrbios duraram 19 noites consecutivas, até o dia 16 de novembro. Cerca de 9 mil carros foram incendiados, 2.921 jovens foram detidos e surgiram quatro novas mortes, além de Benna e Traoré. A 17 de novembro a polícia declarou que a situação tinha sido normalizada.

Em 2007, Ladj Ly – através do grupo Kourtrajmé – lança o documentário de 25 minutos “365 jours à Clichy-Montfermeil”, dedicado aos distúrbios de 2005. Num jeito de cinema de guerrilha, Ly continua a filmar e a divulgar online vários episódios de violência policial em Montfermeil, sendo um dos mais conhecidos “Violences policières à Montfermeil”, executado a 14 outubro de 2008.

A génese de Os Miseráveis

Os Miseráveis, o ponto inicial deste projeto, começou com um abuso policial que filmei há dez anos. Filmava algumas coisas no meu bairro. É um bairro onde muita coisa acontece e comecei a filmar os policias e apanhei-os em falso. Falei com o meu grupo Kourtrajamé e decidimos espalhar o vídeo. Depois do inquérito policial e dos Media espalharem o vídeo, o agente foi suspenso. Foi devido a esse vídeo que decidi fazer, anos mais tarde, Os Miseráveis, a curta-metragem.“, explicou Ladj Ly aos jornalistas em Cannes, adicionando em San Sebastián ao C7nema que inicialmente sempre preferiu fazer uma longa, mas que devido à ausência de financiamento e uma certa inexperiência começou pela curta: “Comecei por filmar os making-of dos trabalhos dos meus compinchas. Durante vários anos fui aprendendo, fazendo documentários, videoclipes, vídeos na rua em que filmava os polícias. Sempre quis fazer filmes de ficção, mas isso é um exercício difícil. Senti a pressão também, pois os meus colegas já tinham feito uma ou duas longas-metragens. Levei o meu tempo a aprender, mas cheguei lá.

Les Miserables, a curta

A curta teve grande sucesso e foi selecionada para vários festivais. Ganhou mais de 30 prémios. “Foi por isso que achei que estava na altura certa de fazer a longa-metragem, que tem o mesmo nome.“, explicou Ly.

Les Miserables, a longa: o “bebé” de Ladj Ly

Passado em Montfermeil, no filme acompanhamos Stéphane, um polícia que integra a Brigada Anti-Crime (BAC) de Montfermeil, nos arredores de Paris. Aí conhece os seus novos colegas de equipa, Chris e Gwada, dois agentes experientes mas não tarda a descobrir as tensões entre os diferentes gangues locais. Durante uma detenção, um drone filma todos os seus atos e gestos, que não são nada pacíficos. Na verdade, o que o drone captou pode gerar uma reação de protesto da população, sendo assim fulcral eliminar essas imagens.

Ao C7nema, Ly disse que Os Miseráveisera o seu bebé e que iria com ele para todo o lado“, numa referência à campanha para os Oscars. Contudo, isso não implicava de todo que durante as filmagens ele fosse intransigente e rígido quanto à interpretação do texto por parte dos atores. “Na verdade, é um bebé de todos nós“, contou-nos o ator Damien Bonnard em janeiro, explicando que este não foi de todo um “filme de improvisos“, mas que certas situações surgiram por acaso e Ladj Ly aproveitou-as.

Uma dessas cenas, contou-nos ele, é aquela em que os polícias interpelam um homem na rua que detiveram no passado e que foi solto recentemente. Nessa cena, o rap que ele canta surgiu da sua própria poesia, algo que Ly não teve dúvidas de manter no filme.

Grito de alerta

Ladj Ly define o seu projeto como “um grito de alarme” e recorda que passados vários anos dos motins de 2005, as coisas não mudaram muito: “Há vinte anos que dizemos que as coisas não estão bem e temos a sensação que ninguém nos ouve. Aliás, eu queria enviar uma mensagem ao Presidente da República, o senhor Macron, para ele ver o filme, pois é importante. Há vinte anos que somos “coletes amarelos”, que pedimos os nossos direitos e que temos de lidar com a violência policial. Há vinte anos que lidamos com flash-balls e parece que agora, com os coletes amarelos, muita gente descobriu que existe violência policial. Nós vivemos com ela há muito tempo. ¾ de nós já fomos atingidos pelas flash balls, mas agora a França descobriu que a polícia é violenta e usa meios perigosos. Os coletes amarelos estão nas ruas há meses e parece que foram ouvidos, por isso… acho que temos um problema em nos ouvirem. Em ouvirem os bairros.

A polícia: vilões e vítimas

As coisas não estão bem nas forças policiais, disse-nos Damien Bonnard: “As coisas têm mudado, pois na altura dos atentados de Paris a popularidade da polícia subiu. Mas os recentes casos de violência policial [contra os coletes amarelos] trouxeram novamente uma enorme impopularidade. Por isso, existe essa raiva contra eles. Mas do lado da polícia, as coisas também não estão bem. Recentemente, 32 polícias suicidaram-se com a sua arma de serviço, o que demonstra também sofrimento. Há algo de errado.

A mesma opinião partilha Djebril Zonga, que fala em instabilidade generalizada entre a polícia e a população: “Não é apenas um problema dos subúrbios. No campo também há problemas [exemplo dos coletes amarelos]. Não é uma coisa boa eles terem essa má reputação. (…) Há tantos casos de violência policial que saíram impunes que obviamente gerou-se esta raiva contra as forças da lei“.

Sobre a forma como deram corpo aos polícias que vemos em cena, Bonnard afirmou: “como inspiração, nos cingimo-nos mais a testemunhos de policias e documentários. Uma referência que tivemos no nosso trabalho foi “Serpico” e “Dia de Treino”. Mas o trabalho foi acima de tudo de observação das forças da lei e conversas entre nós e não tanto essas referências literárias ou cinéfilas”.

Isto não é uma “Ladj Ly Joint

Quando aparece alguém novo na indústria do cinema, existe uma tendência na imprensa de colar essa pessoa a alguém, de forma a cativar os espectadores. Com Ladj Ly não foi diferente e mal o filme chegou a Cannes, quer a Agência France Press, quer o Le Monde, apontaram-no como o “Spike Lee” francês.

Questionado pelo C7nema sobre essa comparação, Ly afirma sorrindo que “está tudo bem“, que não se importa com o apelido, mas acrescenta que ele não é de todo correto de usar: “Gosto muito do Spike Lee, dos seus filmes, e até posso aceitar que existam semelhanças, mas estamos noutra época, noutro período, noutra região. Quero contar as minhas histórias e para mim isso é o mais importante“.

Esperança para o futuro?

Ao contrário de Bonnard, que nos disse que os tempos de otimismo já lá vão e que não crê muito em grandes mudanças, Ly mantém uma réstia de esperança, apontando o dedo aos jovens desses bairros problemáticos com quem deverá ser cuidado com maior atenção: “Ponho-me na pele desta juventude. Cresci nestes bairros sociais, mas para esta geração crescer neles é como começar a vida com um handicap. Aquelas escolas são um handicap e quando eles acabam o ensino vai ser muito difícil encontrar um emprego.” O argumentista do filme, Giordano Giderlini, concorda, lembrando a tal citação de Victor Hugo, a única do autor em todo o filme: “[A frase] é direccionada aos jovens, eles precisam de apoio, de serem ouvidos. Por outras palavras, acho que somos responsáveis pelo que estamos a fazer a estes miúdos. Se nada for feito, as coisas vão explodir como vemos no filme.

O que se segue, Ladj Ly?

Sobre o futuro das suas produções, Ly afirmou ao C7nema que os seus filmes vão continuar a ter uma forte componente social e política, e que Os Miseráveis representa apenas o primeiro “capítulo” de uma trilogia.

O segundo filme, que ele tenciona filmar este ano, será uma cinebiografia em torno de Claude Dilain, falecido presidente da câmara de Clichy-sous-BoisJá o terceiro filme será rodado dentro de dois anos, mas Ly mantém o secretismo.

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