Segunda-feira, 20 Maio

Cannes: o melhor (até agora)

Já ultrapassada a primeira semana do Festival de Cannes, aqui fica a lista dos filmes que mais nos impressionou até agora.

La Civil“, de Ana Teodora Mihai

Drama bem intenso, sem necessidade de ação frenética, mas sem nunca carburar em lume brando, “La Civil” leva-nos ao México para contar a história de uma mãe que vê a filha ser sequestrada. Pago custosamente o resgate ao gangue ligado aos cartéis que a raptaram, a jovem nunca regressa, permanecendo sempre no ar a dúvida sobre o seu paradeiro. Com a inércia da polícia e do seu ex-marido, entregue a uma estranha letargia e fraqueza para lidar com a situação, esta mulher (interpretada de forma soberba por Arcelia Ramirez) parte em busca da verdade, fazendo um estranho pacto com os militares na guerra contra os cartéis.

The Divide” (“La Fracture“), de Catherine Corsini

Tudo o que era improvável acontecer acontece numa noite passada num hospital gaulês, já normalmente afetado pelos problemas habituais de escassos recursos. De um lado temos uma mulher abandonada pela namorada (interpretada por Valeria Bruno-tedeshi) que depois de escorregar fratura o cotovelo/braço. Do outro temos a namorada (Marine Fois), a tentar fugir da relação mas arrastada para ela depois do acidente. E temos ainda um camionista que depois de uma manifestação dos coletes amarelos é ferido pela polícia, acabando no mesmo hospital entregue ao caos. Catherine Corsini consegue aqui um dos seus filmes mais conseguidos, atacando o drama da falta de recursos no sistema de saúde gaulês, enquanto paralelamente conta histórias pessoais bem equilibradas entre o humor e a comédia.

Bonne Mère“, de Hafsia Herzi

Bela surpresa a que Hafsia Herzi tinha agendada para a Un Certain Regard, um drama passado em Marselha que segue uma mulher já nos seus cinquenta anos que tem de lidar com dezenas e dezenas de problemas familiares e laborais. A começar pelo filho preso, a filha que se envolve numa rede de sadomasoquismo bem pago (não chamamos prostituição porque esse é um dos elementos de discussão no filme) e toda a precariedade da sua vida, num emprego onde não é de todo bem paga, mas é muito amada pelos colegas. Inspirado na própria mãe de Hafsia, “Bonne Mère” é uma delícia marselhesa com um toque do cinema de Andrea Arnold nas veias.

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Onoda“, de Arthur Harari

Assinado pelo gaulês Arthur Harari (“Diamant noir“), “Onoda – 10000 Nights in the Jungle” foi um dos filmes que mais saídas da sala provocou na sua estreia (abriu Un Certain Regard), mas igualmente aquele que mais aplausos arrancou nos que ficaram. A história do soldado Onoda tornou-se um sucesso no Japão, onde regressou em 1974 como um verdadeiro herói. Este segundo-tenente acreditava que o imperador era uma divindade e a guerra uma missão sagrada, sobrevivendo com bananas e cocos numa ilha filipina durante 29 anos recusando-se a acreditar que a Segunda Guerra Mundial tinha acabado e o Japão perdera a guerra. Harari foge do tom de fait divers da história, apresentando um estudo de personagens vigoroso, além de apresentar uma paisagem longe da saturação de cores exótica habituais na apresentação de uma selva que será o seu refúgio durante décadas. 

Zero Fucks Given” (“Rien à Foutre“), de Julie Lecoustre & Emmanuel Marre

Não é apenas um trabalho sobre a precariedade da condição das hospedeiras das companhias áreas low cost, mas um vigoroso estudo dos nossos tempos, da solidão e da desumanização laboral que condiciona a vida familiar, amorosa e tudo mais. Um belo filme da dupla belga Julie Lecoustre & Emmanuel Marre, com Adèle Exarchopoulos a voltar a brilhar intensamente em Cannes depois de “A Vida de Adèle”.

Ahed’s Knee“, de Nadav Lapid

Qualquer semelhança entre a história do protagonista desta história, Y, e a do realizador Nadav Lapid não é pura coincidência. O enfant terrible do cinema israelita conta uma história entre as lutas pessoais e globais, em particular contra o governo do seu país que através do Ministério da Cultura tenta condicionar a criação artística. Um ataque certeiro de Lapid que se tornou um dos filmes menos consensuais do certame.

Delo” (“House Arrest“), de Alexey German Jr.

Poderia ser a história de Kiril Sbrenikov, mas não é. É uma história que o russo Alexey German Jr. tinha na cabeça há seis anos, a de um homem comum que na Rússia acusa o Presidente da Câmara da sua terra de corrupção, sendo rapidamente silenciado com uma prisão domiciliária por alegados desvios de fundos. “Nunca vai acabar a corrupção na Rússia”, disse-nos o realizador em entrevista, num filme que mais que atacar as fontes governamentais ataca a moral embutida na sociedade e a estrutura/hierarquia vertical no território.

The Worst Person in the World“, de Joachim Trier

É o nosso preferido da competição principal, até agora, esta “dramédia” centrada numa mulher que vai desperdiçando pedaços de vida e conquistando outros através de relacionamentos amorosos que colapsam e nascem. Há muito tempo não se via uma história de amor assim no grande ecrã, ainda para mais nascida na “ilegalidade” do adultério. Mas isso são apenas alguns dos 12 capítulos, um prólogo e um epílogo de uma história que toca ainda no drama das enfermidades terminais sem cair num jogo manipulativo de conquistar lágrimas. Um grande regresso de Joachim Trier, o qual competiu pela primeira vez em Cannes com “Oslo, 31 de agosto” na Un Certain Regard, regressando em 2015 com “Ensurdecedor”. 

Softie” (“Petite Nature“), de Samuel Theis

Mais um “filho” do cinema de Andrea Arnold e um regresso de Samuel Theis, que brilhara com “Party Girl“, vencedor da Câmara de Ouro em 2013. A história de um miúdo que que vive no seio de uma família disfuncional que ganha afeição por um professor, poderá chocar algumas mentes, mas a delicadeza e sofisticação do texto coloca-o com um dos favoritos ao prémio final da semana da crítica.

Return to Reims” (“Retour à Reims“), de Jean-Gabriel Pérot

Genial é pouco para descrever este ensaio documental, presente na Quinzena dos Realizadores, sobre as transformações em França no pós-guerra, em especial na passagem do apoio da classe operária da extrema esquerda para a extrema direita, traçando-se ainda um retrato da sociedade patriarcal e da condição da mulher nos últimos 70 anos. Um esforço tremendo do cineasta Jean-Gabriel Périot, que já brilhara no passado com “Une Jeunesse Allemagne“.

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