Segunda-feira, 6 Maio

Urso de Ouro para “There Is No Evil” coroa resiliência da arte contra estado opressor

Em fase de renovação, com a passagem de bastão da direcção, o Festival de Berlim fechou a sua 70ª edição consagrando um monumental exercício de empatia ambientado num local de censura, de veto político de mordaça: venceu o Irão, representado por “There is no evil”, de Mohammad Rasoulof.

Na noite deste sábado, foi para ele o Urso de Ouro de 2020, disputado por 17 ficções e um documentário de 21 a 28 de fevereiro. É uma longa-metragem em segmentos com quatro histórias sobre gente que executa prisioneiros a mando do governo iraniano e sobre os amores que as cercam. As suas abordagens vão do melodrama de família ao tom de thriller, seja na situação do pai de família que sai de madrugada para liquidar inimigos do estado, seja na relação de um homem com a sua sobrinha recém-chegada de longe. Rasoulof, que ganhou fama mundial ao conquistar o prémio Un Certain Regard de Cannes, em 2017, por “Lerd”, não pode deixar a sua pátria por uma proibição governamental, tendo que ficar mais dois anos sem poder viajar. O seu monumental estudo sobre a implosão dos afetos, sob o cabresto do Estado, é o terceiro título vindo do Irão a deixar a Alemanha com o Urso dourado nesta década, sendo precedido por “A Separação“, de Asghard Farhadi, em 2011; e “Táxi Teerão“, de Jafar Panahi, em 2015.

Existem filmes que têm coração, sendo capazes de atravessar o Tempo connosco. Com sorte a gente talvez encontre uma miríade dessas aqui“, disse o presidente do júri deste ano, o ator inglês Jeremy Irons (vencedor do Oscar por “Reveses da Fortuna“), no início do evento, prevendo que encontraria aquela experiência estética que desata nós e desatinas mentes.

Foi um ano de trocas na gestão do evento, que passou anos a fio numa maré de percalços: saiu seu ex-presidente, Dieter Kosslick, e entraram Mariette Rissenbeek, como diretora executiva, e Carlo Chatrian, no posto de diretor artístico. E ambos potencializaram a arte de mobilizar holofotes que Berlim teve no passado, mas que parecia perdida. Chegaram à ousadia de premiar uma comédia com fôlego para arrastar multidões aos cinemas: “Effacer L’Historique“, de Benoît Delépine e Gustave Kevern, laureada com o troféu especial do 70º aniversário da Berlinale. É uma provocativa obra burlesca sobre a nossa submissão nada erótica às redes sociais e à tecnologia digital. “Os mossos filmes têm uma dimensão de denúncia, mas também têm mel, têm afeto… e, aqui, o nosso olhar se volta sobre a privacidade de pessoas que se deixaram dragar pelos smartphones“, disse Kervern à Berlinale, comemorando a vitória do cinema comercial de França, com um hilário painel de situações, incluindo uma motorista de apps que é dependente de séries de TV. “Como Benoît e eu andamos muito de metro, todos os dias temos tempo de observar as vidas alheias“.


Benoît Delépine e Gustave Kevern na Berlinale

No júri de Irons estavam a atriz francesa Bérénice Bejo; a produtora alemã Bettina Brokemper; a cineasta palestina Annemarie Jacir; o dramaturgo e cineasta americano Kenneth Lonergan; o ator italiano Luca Marinelli; e o realizador pernambucano Kleber Mendonça Filho, laureado em Cannes com o fenómeno popular “Bacurau”. Coube ao brasileiro anunciar a categoria de melhor realização, cuja distinção foi para a rizomática estrutura de observação da vida de Hong Sang-soo, um dos pilares da indústria sul-coreana, hoje no seu apogeu. “Não posso definir-te o que seria amizade ou solidão, dois assuntos desta minha nova experiência, porque não trabalho com conceitos, eu apenas abro a perceção para o que a vida pode me mostrar”, disse Sangsoo ao C7nema, acerca da sua trama sobre uma mulher que visita as amigas para conversar sobre lealdades, descomposturas e gatos.

Além de anunciar a consagração de “There Is No Evil”, Irons ficou incumbido de falar do filme mais controverso desta seleção, o drama russo “Dau. Natasha“, que, por pouco, não enverga o júri com as suas polémicas de bastidores, envolvendo condutas abusivas com as suas atrizes. Coube a ele algo inquestionável eticamente: a láurea de Contribuição Artística, dado ao russo Jürgen Jürges, pela fotografia desta história sobre uma mulher que entre ressacas de vodca e sexo selvagem encara a repressão da polícia estatal da URSS.

“Beeeeem” mais leve foi a premiação de Paula Beer, expoente do cinema alemão atual, por “Undine”, de Christian Petzold, prata da casa, encarada como um Midas da produção germânica recente. O cineasta ainda ganhou o prémio da crítica, dado pela Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica (Fipresci) a uma saga que Paula ajuda a erigir. Ela é uma historiadora que é abandonada pelo amante, uma vez que este prefere ficar com outra mulher, alegando falta de sal em sua relação com a personagem de Beer. Eis que, entre andanças para desopilar o peito, ela esbarra com um escafandrista (Franz Rogowski) com quem vai mergulhar fundo no querer.


Undine

Já o prémio de melhor ator fez uma justiça histórica ao devolver Elio Germano, de Itália, a uma ribalta que ele merece renovar ano a ano. Consagrado em Cannes há exatamente dez anos com “La Nostra Vita”, ele teve duas fitas na Berlinale, ambas premiadas por Irons & Cia. O Urso de Prata de atuação masculina foi para o ator romano pela sua avassaladora composição do pintor Antonio Ligabue (1899-1965), vítima de limitações físicas e mentais, representado em “Volevo Nascondermi”. Germano ainda integra a trupe de talentos que fez de “Favolecce”, de Fabio e Damiano D’Innocenzo, uma evocação dos filmes de culto italiano de Ettore Scola e Dino Risi. O prémio de melhor guião foi justíssimo para qualificar uma radiografia da vida nos subúrbios romanos, entre pais machistas e crianças assoladas pelo egocentrismo dos seus parentes, com direito a uma jovem grávida capaz de usar o leite do peito para produzir iguarias.

E, se o assunto é maternidade, nada mais justo do que “Never Rarely Sometimes Always“, de Eliza Hittman, centrado no périplo de uma adolescente grávida para decidir (ou não) pelo aborto, ter recebido o Grande Prêmio do Juri. A sua narrativa terna é uma análise das pressões que cercam o universo feminino, construído como uma aventura de educação sentimental.

Faltaram prémios para filmes brilhantes como “Sibéria”, de Abel Ferrara, e para “Berlin Alexanderplatz”, de Burhan Qurbani, mas quem ganhou mereceu. Nenhum prémio foi mal empregado. E ainda houve, nas mostras paralelas, justiça para os grandes concorrentes desta edição de epifanias (dentro e fora dos ecrãs), como “Days”, do taiwanês Tsai Ming-Liang, coroado com o Urso Teddy, a láurea LGBTQ+, respeitada pelo seu papel de inclusão das orientações sexuais – uma das muitas causas defendidas pelo Festival de Berlim. Um festival que chega aos 70 anos enxuto, provocante e capaz de arrancar sorrisos da cinefilia.

Urso de Ouro: “There is no evil”, de Mohammad Rasoulof
Grande Prémio do Júri: “Never Rarely Sometimes Always”, de Eliza Hittman
Prémio do 70º Festival de Berlim: “Effacer L’Historique“, de Benoît Delépine e Gustave Kervern
Realização: Hong Sangsoo, por “The Woman Who Ran”
Atriz: Paula Beer, por “Undine”
Ator: Elio Germano, por “Volevo Nascondermi”
Guião: Fabio e Damiano D’Innocenzo, por “Favolecce”
Contribuição artística: Jürgen Jürges, pela fotografia de “Dau. Natasha”
Prémio Glshütte de Melhor Documentário: “Irradiés”, de Rithy Panh (Camboja/ França), com menção honrosa para “Notes From The Underground”, de Tizza Covi e Rainer Frimmel (Alemanha)
Urso de Ouro de Curta-metragem: “T”, de Keisha Rae Witherspoon (EUA)
Prémio do Júri de Curta-metragem: “Filipiñana”, de Rafael Manuel (Filipinas)
Prémio Audi de Curtas: “Genius Loci”, de Adrien Mérigeau (França)
Melhor longa-metragem de estreia: “Los Conductos”, de Camilo Restrepo (Colômbia/ Brasil), com menção honrosa pra “Naked animals”, de Melanie Waelde (Alemanha)
Prémio da Crítica (Fipresci): “Undine”, de Chtistian Petzold

Competição Encounters

Melhor filme: “The Works and Daysn(of Tayoko Shiojiri In The Shiotani Basin”, de C. W. Winter e Anders Edström (EUA/ Suécia/ Japão)
Prêmio do Júri: “The Trouble Of Being Born”, de Sandra Wollner (Áustria)
Realização: Cristi Puiu, por “Malmkrog” (Roménia)
Menção honrosa: “Isabella”, de Matías Piñeiro (Argentina)

Notícias