Quarta-feira, 8 Maio

Luz nos Trópicos: a cosmologia da selva e dos afetos na poesia de Paula Gaitán

"Luz nos Trópicos" está em exibição no Doclisboa

Mundialmente reconhecida pela sua transgressão às convenções da imagem como artista visual e como realizadora, premiada por todo planeta pelas narrativas de tónica poética de Uaka (1988) e Exilados do Vulcão (2013), Paula Gaitán tem um novo e monumental – pelo que dizem em solo alemão – exercício de linguagem.

São 255 minutos falados em português, francês, kuikuro e outros idiomas dando conta de uma travessia ligada à floresta e à cosmogenia indígena, com histórias que correm em paralelo, separadas por 150 anos no Tempo, num espaço fluvial. São cosmologias que se cruzam pelos rios das Américas. De um lado, um jovem índio numa jornada pelas matas brasileiras. Do outro, vemos um grupo de europeus também em curso rio acima, só que mediados por uma interlocução com o cinema. É uma experiência que foi convidada para a seção Fórum da Berlinale 70. Um projeto que integra o connjunto de 19 produções com o Brasil no DNA. E, por meio dele, Paula volta aos ecrãs cheia de fôlego para levar as plateias da maratona cinéfila germânica ao transbordamento.


Luz nos Trópicos

A Berlinale é um espaço importantíssimo para o cinema de autor, talvez uma das melhores janelas no momento atual. Este trabalho é um river movie, de associações livres , de montagem à distância, de sonoridades polifónicas, atravessado por conceitos de ancestralidade, de pertencimento. O fotógrafo é o Pedro Urano, com o qual eu tinha realizado “Diário de Sintra”, um outro projeto sobre memória, memória involuntária… um filme de viagem real ou imaginária a Portugal, a partir da época em que morei lá com Glauber Rocha e nossos filhos. ‘Luz nos Trópicos’ talvez seja atravessado por vários outros filmes meus“, explica Paula ao C7nema. “O filme trabalha com vários suportes que vão do digital à película, do super 8 ao 16 mm. Trata- se de uma longa síntese de universos evocados em outros filmes anteriores, porém já com a maturidade que corresponde a quase 40 anos de trabalho ininterrupto em cinema e imagens em movimento“.

Pela descrição no site oficial da Berlinale: Luz nos trópicos” (“Light in the Tropics”), com as suas mais de quatro horas de duração, galopa entre diferentes épocas como um cavalo selvagem, culminando numa brilhante homenagem às florestas e rios da América do Norte e do Sul e aos povos indígenas que ali vivem”. Parceira habitual de Paula, a atriz Clara Choveaux integra o elenco, ao lado de Carloto Cotta, que empresta o seu carisma à longa-metragem, produzida pelo filho de Paula, o aclamado cineasta Eryk Rocha (vencedor do troféu L’Oeil d’Or de Cannes por Cinema Novo, em 2016). “Eu nasci em Paris. A minha mãe era brasileira de origem russa. Os meus avós vieram da Rússia para o Brasil na época da Primeira Guerra Mundial e meu pai era colombiano, de uma cidade chamada Cúcuta, em uma região que faz fronteira com a Venezuela. Uma região interessante da Colômbia, é a região dos Índios Motilones. Eu sou do interior da Colômbia, desse lugar extremamente calorento. Meus avôs eram de lá, então esse aspecto mais latino-americano da minha obra vem muito dessa herança colombiana minha“, conta Paula, explicando a natureza de andança de “Luz nos Trópicos”. “Conheci o Glauber na Colômbia, quando ainda era estudante de filosofia e artes visuais. Ele estava na Colômbia para encontrar alguns cineastas e, por acaso, pude conhecê-lo na casa de uma amiga. Ele estava vindo do Chile depois de visitar dois diretores que estavam presos e o Darcy Ribeiro havia pedido para o Glauber passar pela Colômbia para ajudar esses dois cineastas. Depois disso, eu vim visitar minha mãe no Brasil e reencontrei o Glauber, recém-chegado do exílio, em 1977. No reencontro, nós nos apaixonamos. A partir disso, evidentemente comecei a colaborar com ele em alguns projetos. Fiz cartazes de alguns filmes, fiz desenhos, inclusive, de um livro que acaba de ser republicado, “O Nascimento dos Deuses”. Foi uma relação de colaboração criativa muito forte, além do casamento e de termos tido dois filhos. Fiquei viúva e a vida me levou para trabalhar no cinema. Eu já era artista visual e fotografa e aos poucos comecei a dirigir meus próprios filmes. Até hoje, já realizei oito longas-metragens. Este ano, tive “É Rocha e Rio, Negro Léo”, na Mostra de Tiradentes, em Minas Gerais, e, agora, “Luz nos Trópicos”, que está indo para o Fórum de Berlim“.


Luz nos Trópicos

Aplaudido calorosamente em Tiradentes, “É Rocha e Rio, Negro Léo” é um retrato de um compositor e poeta que faz do lirismo um instrumento de afirmação de lutas. “O filme acompanha o fluxo de pensamento do Leo. Esse é um filme onde a palavra do Léo me interessa. É um filme onde ele fala de maneira expandida: é o fluxo do pensamento do personagem com suas contradições. O Léo é sociólogo, então ele fala dos mais variados temas que vão desde política, História, arte, filosofia, questões muito atuais sobre política, com um pensamento muito original e interessante. No decorrer do filme ele canta, compõe. A câmara está camuflada às vezes. É uma câmara de observação. O Léo é meu genro. Ele está casado com a minha filha e é pai da minha neta, então tem uma certa intimidade no sentido de que talvez ele não estaria tão aberto a falar de alguns assuntos se fosse com outra pessoa. Essa câmara está em uma circunstância favorável, em que o personagem está totalmente tranquilo e à vontade pois existe uma relação que foi construída ao longo de dez anos. Sempre tive grande de curiosidade para ouvi-lo, portanto me pareceu importante fazer um filme sobre ele“, explica Paula. “De certa maneira, parte dos meus filmes transitam por uma espécie de cinema familiar. O ‘Diário de Sintra’ é um exemplo disso. Os meus filmes possuem uma relação muito estreita com a minha vida. Existe essa simplicidade de falar sobre que se conhece bem. Isso é para mim uma fonte de riqueza e inspiração“.

[texto originalmente publicado em fevereiro de 2020]

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