Sábado, 4 Maio

Chaitanya Tamhane: “Onde há adversidade, há arte”

Quando Chaitanya Tamhane lançou em 2014 “Court”, rapidamente o mundo dos festivais de cinema internacionais apelidou-o de a maior promessa do cinema indiano em várias décadas. 

Em 2020, e ao segundo filme, esta “promessa” vinda do país de Satyajit Ray transformou-se em “confirmação” após “The Disciple” (O Discípulo) ecoar com toda a glória e estrondo nas salas de cinema do Lido em Veneza.  O percurso vitorioso do filme, iniciado aí, onde arrecadou o prémio de melhor argumento, além da distinção FIPRESCI, prosseguiu por outros certames, onde se inclui o LEFFEST em Portugal ou o Festival de Toronto, de onde saiu com o Amplify Voices Award.

Chegamos então a 2021, em plena crise pandémica, e com poucas opções para a distribuição em sala, “O Discípulo” acaba finalmente por encontrar no streaming e na Netflix a sua sala de exibição primordial.

Foi no Festival do Cairo, onde servia como jurado da competição internacional, que nos cruzamos com o Tamhane e conversámos sobre o seu percurso na 7ª arte, a importância de Mumbai nos seus filmes, e como “Cidade de Deus” representou um primeiro passo para o seu “divórcio” com o cinema de Bollywood, com o qual cresceu. E falamos naturalmente da pandemia, do streaming, de “conteúdos” e dos perigos que as salas de cinemas enfrentam nos dias de hoje.

Há um artigo dedicado a si no Hindustan Times que se intitula “He who divorced Bollywood” (Ele que se divorciou de Bollywood). O artigo menciona um documentário que fez nos tempos de faculdade em que expunha o cinema de Bollywood como algo que de forma rotineira copiava o que era feito fora do país. Como é que essa descoberta transformou-o e levou-o a ser o que é hoje?

A minha jornada como cineasta ou a minha concepção de cinema não funcionam de todo como um manifesto anti-bollywood. Sim, cresci apenas a ver os filmes de Bollywood e os de Hollywood só via dobrados em hindi. Não tínhamos muito dinheiro, não ia frequentemente às salas de cinema, e por isso o que havia para ver eram filmes indianos comerciais, os quais têm uma influência enorme na Índia, como se fossem uma religião. 

Claro que sempre estive interessado em histórias, em ver os sonhos transcritos nas telas, mas a minha jornada na 7ª arte começou principalmente quando tinha 19 anos e descobri cinema mundial. “A Cidade de Deus” foi o primeiro filme em língua estrangeira que vi e foi uma verdadeira revelação, “Existem filmes além de Bollywood”, disse para mim. Foi  então que comecei a ver cinema de todo o mundo e percebi que muitos dos filmes indianos que amávamos eram cópias, muitas vezes frame-a-frame, de outros. 

Convém dizer que estes eram tempos em que os estúdios de Hollywood ainda não estavam na Índia e os produtores locais não tinham de pagar pelos direitos de adaptação. Eles também sabiam que ninguém os ia processar judicialmente por isso. 

E nessa altura de descoberta do cinema mundial, além do Fernando Meirelles que outros cineastas descobriu?

Além do Meirelles, estes foram tempos em que descobri Wong Kar Wai, Lars Von Trier e Michael Haneke… 

Todos eles muito poderosos… 

Sim, todos eles muito fortes (risos). Também descobri Fellini, o Satyajit Ray e o Buster Keaton. Foi totalmente um novo mundo que apareceu perante os meus olhos. Durante três anos, se me perguntarem o que fiz, diria que vi filmes de todo o mundo (risos). Foi como uma possessão.

E as temáticas desses filmes também chamavam a sua atenção?

Sim, todos esses filmes deram-me um sentimento de empoderamento. Os filmes já não eram apenas sobre indianos ricos a dançar, ou de bons contra maus. Esta era também uma maneira de viajar, de conhecer outras culturas, de ver a condição humana em diferentes continentes, contextos e sociedades. E ver esses filmes trouxe-me também a confiança que precisava para contar histórias sobre a minha cultura e sociedade….

E foi isso que fez em “Court” (2014), que é um filme extraordinário. Como chegou até ele?

As ideias para os meus filmes começam sempre com coisas muito parvas, mas depois parto para a investigação dos temas. Nunca fui jornalista, mas investigo como um. 

No caso do “Court”, o que aconteceu é que estava a ver um daqueles dramas legais muito clichês e pensei para mim mesmo que claro que aquilo não funciona assim na Índia. Disse então que queria visitar um tribunal indiano, pois no nosso cinema apenas vemos cenas no Supremo Tribunal e não nas instâncias mais baixas. Tinha ouvido algumas histórias engraçadas sobre problemas e burocracias que as pessoas tinham passado nesses tribunais e imaginei como seria um destes dramas legais se fosse realizado pelo Bong Joon Ho (risos). 

Claro que o filme, que depois assistimos no final, é diferente dessa ideia, mas foi nesse pensamento que a jornada para fazer o projeto começou. Visitei tribunais de pequena instância em Mumbai, falei com advogados, ativistas, etc. Foi também neste período que a minha consciência e personalidade política começou a ser formada a partir das coisas que estavam a acontecer no meu país. E na altura até tínhamos um governo diferente do atual. 

O “Court” foi uma forma de descobrir a minha cidade e o meu país, e a equipa que levei comigo nessa jornada começou igualmente a emergir.

Court

E Mumbai está permanentemente presente nos seus filmes como uma personagem por si só…

Sem dúvida. Nos meus filmes, Mumbai é sempre uma personagem, até porque conto histórias que só lá podiam acontecer. Mumbai é uma besta, um camaleão. Não existe uma Mumbai, tu escolhes a Mumbai que queres ser. Simultaneamente, tal como em qualquer grande cidade do globo, ela joga um papel fulcral na tua psique e modela a tua identidade na luta pela sobrevivência. Porém, Mumbai está sempre a mudar. Nasci em 1987 e vivi e fui criado em Mumbai. Vi a cidade mudar bastante, muitas coisas a desaparecer e espaços a serem ‘lavados’ com centros comerciais horríveis, prédios de betão e construções que nem permitem ver o céu como deve ser. Supostamente, estas são coisas modernas, mas na verdade estão a levar consigo muita da textura das comunidades indígenas, das gentes locais. Essas pessoas estão lá e são marginalizadas em nome do desenvolvimento. Por isso evoco sempre nos meus filmes aquilo que se vai perdendo, a cidade que já não existe.

Sim, esse conflito entre o moderno e o tradicional está bem explícito nos seus filmes, como em “O Discipulo”, onde escolheu a música para falar do que se perde para a modernidade. Porque optou pela música clássica indiana para falar dessa transição?

O meu processo de desenvolvimento é sempre casar algo que me é totalmente estranho, mas que me fascina e atrai, com algo profundamente pessoal. O filme é sobre música clássica, algo sobre o qual não sabia quase nada quando iniciei a investigação. Comecei com esse estudo do tema, mas o que me moveu foi a perda da fé e a realização, neste mundo em constante mudança, que talvez as ideias e valores com que crescemos não encaixam nele. Talvez eu não esteja apto para este novo mundo e talvez esse meu conflito fosse interno. Tudo isto era muito pessoal para mim e acho que na minha jornada pelo cinema tenho sido perseguido por estes pesadelos. Veja o que está a acontecer com o cinema nos dias de hoje, em que ele tem de lutar pela sua relevância. O cinema é um bom exemplo destas mudanças permanentes no mundo. 

Ainda bem que toca nesse assunto da sobrevivência do cinema, pois o seu “O Discípulo” está na Netflix…

Sim, está. Foi lançado num ano (2020) que foi provavelmente o pior de sempre, desde a 2ª Guerra Mundial, para os cineastas. A Netflix é uma plataforma e são os seus utilizadores que fazem dela a sua relevância. 

No meu caso, a minha resposta é bem mais simples, pois não existiam muitas hipóteses de distribuir o filme de outra forma. A presença da Netflix em tantos países ajuda-me, por exemplo, a amanhã dizer com facilidade a qualquer pessoa onde pode ver o meu filme. No caso do “Court” não foi assim; tinha de perguntar de que país a pessoa era, ou talvez pudesse lhe enviar um link. Há prós e contras no facto do filme estar na Netflix e claro que gostaria que as pessoas o vissem num grande ecrã, com determinadas condições de som, etc.

O Discípulo

Sim, é um filme que ganha muito com o grande ecrã…

Pois, mas tivemos de nos adaptar às circunstâncias. 

E todos os louvores que “O Discípulo” tem recebido desde a sua estreia em Veneza, eles mudaram a sua forma de ser e trouxeram-lhe uma pressão extra para o seu próximo projeto? É que agora muitos esperam algo extraordinário como “O Discípulo”

Senti um pouco isso depois do “Court”. Por isso mesmo demorei tanto tempo a fazer o meu segundo filme, “O Discípulo”. Mas agora já não sinto essa pressão (risos). Sei que o segundo filme é sempre mais complicado que o primeiro, mas acho que cheguei naquele espaço mental em que sei que vão existir altos e baixos na minha carreira e o que tenho de fazer é continuar a trabalhar.

E é também parte do meu trabalho “matar”, tirar da minha cabeça, esses fãs e a aceitação por parte da crítica. Se não o fizer, vou me repetir. Nós não temos apenas de nos divorciar daqueles que odeiam o nosso trabalho, mas igualmente dos que o amam. E fazemos isso criando algo novo de maneira a não termos medo de explorar e experimentar. Nunca conseguimos criar algo novo sem que o medo de falhar esteja presente.

E já está a trabalhar num novo projeto?

Sim, estou a trabalhar em algo. Sabe, a pandemia abalou o meu espírito.

A pandemia mudou-o?

Mudou-me muito. Envelheci muito mentalmente (risos). “O Discípulo” foi lançado durante a pandemia, que foi uma altura estranha para lançar qualquer filme. Também perdi algumas pessoas muito próximas para o Covid-19 e isso deu-me uma nova perspetiva de vida. Aquilo que está também a acontecer no meu país também me afectou. Temos um cenário político muito complicado. E, claro, o que está a acontecer ao cinema e como o Covid-19 afetou a paisagem cinematográfica, também mexeu comigo. Estou num processo de renascença, a recalibrar-me para esta nova realidade.

E vai continuar a querer contar histórias da Índia ou planeia saltar para o palco internacional?

A minha intenção é essa, continuar na Índia. Tenho tido muitas propostas do ocidente, mas acho que esta terra é muito rica em histórias. Onde há adversidade, há arte. Porém, e simultaneamente, existe aquela linha muito ténue que me leva a temer ficar preso num registo ou numa zona de conforto. Por isso, estou sempre aberto a novas aventuras e novos caminhos, mas eles têm de vir de lugares de integridade e têm de significar uma verdadeira evolução, bem além da busca da fama ou dinheiro. 

E está aberto a fazer, por exemplo, uma série de TV?

Porque não? É um ótimo meio para explorar personagens e histórias. Mas se me perguntassem agora sobre a minha disponibilidade para tal, preferia fazer uma série limitada que aquelas com 5 mil temporadas (risos). Sou uma pessoa à moda antiga, ainda acredito que as coisas têm um princípio, um meio e um fim. Contudo, fosse um filme ou uma série limitada, ela teria que ser feita com os meus próprios termos. Não quero ceder ao mundo dos projetos por encomenda, se é que me entende. 

A pandemia certamente também mudou o panorama do cinema indiano. Como vê o seu futuro?

A minha resposta serve para qualquer país. A verdade é que ninguém sabe o que aí virá. Pode-se especular, fazer previsões, etc, mas o comportamento humano é complicado. Além disso, a evolução tecnológica está numa fase que não conseguimos compreender a sua totalidade. O que assistimos agora é ao cliché de que o meio é a mensagem. 

Na Índia os cinemas estão a lutar muito. Vários fecharam e muita gente habituou-se a ver as coisas nas suas casas, em telemóveis. Mas os indianos ainda não têm grandes alternativas quando saem à rua para se divertir, a não ser ir aos restaurantes e ao cinema. Claro que temos vários eventos em pubs, clubes de comédia, mas como saída à rua em família, o cinema ainda tem o seu poder. Por isso, embora ninguém realmente saiba, acredito que o cinema possa fazer um grande retorno daqui a 6 meses ou um ano. 

E até mesmo a palavra “conteúdo”, que se tornou famosa recentemente, poderá mudar. Hoje sinto que argumentistas e realizadores têm pouco a dizer sobre o tema, e essas decisões ficam para os produtores e os homens de fato, os executivos. Até em relação aos algoritmos que te dizem o que deves ver, creio que vai haver uma correção. Nada dura para sempre.

Falando agora desta sua experiência como jurado da competição internacional do Festival do Cairo, sente que a sua presença aqui ajuda-o a manter os olhos no pulsar do cinema mundial?

Sim, mas igualmente dá para observar o trabalho de curadoria dos festivais. O que estão a selecionar, o que definem como limites de arte e cinema. E vemos igualmente o que jovens cineastas estão a fazer, ou a não fazer, além de nos encontrarmos com outros membros do júri provenientes de culturas diferentes. Podemos assim observar as suas concepções sobre o cinema. É uma enorme fonte de aprendizagem. Veja, o Emir Kusturica está aqui como presidente do júri. Só o poder ouvir a sua visão sobre cinema é como se fosse uma masterclass.

Sim, mas essas diferentes conceções  e visões sobre o cinema vão gerar certamente longas discussões sobre os filmes a premiar (risos)…

Claro, mas estou pronto para a luta (risos).  A minha carreira tem sido feita com os prémios que ganhei e a aclamaçãoda  crítica. Tenho plena consciência que estes prémios têm muito mais a dizer a esses realizadores que ao júri que os distingue. E sei que esses prémios podem ter um impacto muito sério na vida de uma pessoa, por isso trabalho sempre a pensar nesses cineastas e nos seus filmes. Sou como eles, travei as mesmas batalhas. 

E já que falou em jovens cineastas, que conselhos deixa especialmente para aqueles que estão agora  a entrar neste mundo? 

Especialmente na Índia, existe um problema. As pessoas pensam que pelo facto dos meus filmes terem feito o circuito dos festivais, sou um perito na matéria. (risos) Então perguntam-me como podem se candidatar a esses eventos, qual a estratégia que devem usar, etc. Eu pergunto sempre se já acabaram os seus filmes e muitos dizem que ainda não. Logo aí digo-lhes que essa é uma forma errada de encarar as coisas. Primeiro fazes o filme em que acreditas e só depois lidas com tudo o resto. Conheço mesmo realizadores que estão a mudar e remontar os seus filmes, os títulos, etc, para levarem os seus filmes a esses festivais. A meu ver essa não é uma boa forma de agir. 

E há muitos realizadores que fazem apenas o que chamamos “filmes para festival de cinema”, como se fosse um género.

Sim e isso não tem sentido. Além disso, aconselho sempre a serem destemidos perante eles mesmo e as suas histórias de vida. Eles têm de mostrar como veem o mundo em vez de tentarem se moldar ao que um festival quer ou um outro cineasta oferece.

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