Quarta-feira, 15 Maio

Famille FC ou “a inexplicável teimosia em ser português”

Não é a primeira vez que o realizador André Valentim de Almeida tropeça em questões de identidade em geral, da portuguesa em particular. Há alguns anos, quando trouxe ao Doclisboa “From New York with Love“, a questão surgia do confronto com outra cultura – neste caso movida pelo facto de viver nos Estados Unidos. Já Dia 32, apresentado no IndieLisboa em 2017, o cineasta estava de volta a Portugal e a investigação, paralela ao tema central do filme, lançava um olhar mais amistoso no retorno à casa.

Em “Famille FC“, que marca o seu retorno ao Doclisboa, a ideia foi investigar o tema sobre um outro olhar – partindo de um facto curioso desconhecido pela maioria dos portugueses: a existência de cerca de 200 clubes de futebol nas divisões amadoras francesas de fundação lusitana.

Interagindo com alguns dos envolvidos ao longo da Île-de-France (região de Paris), o realizador pôde constatar aquilo que é, sobretudo, uma forma de manter a ligação com o país natal. Mas não qualquer país: os imigrantes portugueses que surgem pelo filme de André Valentim vêm geralmente do interior – o que coloca a questão do quanto o próprio grande centro metropolitano representa por si uma forma de desenraizamento.

Na entrevista ao C7nema o cineasta observou que o sentimento de pertença coletiva não se restringe a nascidos em França: também há filhos de antigos emigrados que sentem que a sua ligação maior é com Portugal – e não com o país onde nasceram… “Foi curioso encontrar muitas crianças já de segunda e terceira geração que, apesar de terem já nascido em França e não falarem uma palavra de português, têm o desejo de representar a selecção nacional”, comenta.

Para os conhecedores de futebol também tem graça a alusão a Lilian Thuram, o grande lateral-direito da seleção francesa da virada do século XX para o XXI que iniciou num destes clubes lusitanos (o Fontainebleau) e relembrou os seus primórdios com afeto na sua biografia: “O cheiro das sardinhas assadas, das salsichas preenchia o ar; as bandeiras com as cores portuguesas ondulavam; os cantos eram repetidos até a exaustão. nós estávamos em Portugal e eu próprio era português durante algumas horas”.

André Valentim de Almeida

A identidade portuguesa é certamente algo que tem te interessado – caso do “From New York with Love“, onde eras um pouco mais crítico, ou “Dia 32“, quando retornas dos Estados Unidos para Portugal e mostra um olhar mais afetuoso. Em “Famille FC” abordou a forma como a identidade lusitana sobrevive numa terra estrangeira…

A identidade –em sentido lato, portuguesa porque é a minha nacionalidade– é um interesse que sempre me acompanhou e que ganhou maior expressão ao viver num país estrangeiro –no caso, em Nova Iorque durante alguns anos, ainda que de forma irregular. O viver-se num país estrangeiro – não a experiência superficial de turista – traz sempre uma nova consciência sobre a nossa identidade no contraste com o outro, uma nova consciência sobre todas as nossas fundações –do pensamento à voz, do corpo ao gesto– que nos conduz a um estado de permanente vigília e descoberta individual.

Foi desta consciência que nasceu o “From New York with Love” e o reforço do meu interesse pelo tema da identidade, que era um diário visual e sonoro onde registo as minhas impressões desse confronto e, também, cartografia de um caminho de reconstrução identitária – ou de encontro de algo intermédio. Entretanto passou algum tempo e realizei o “Dia 32“, filme que eu qualificaria como um filme sobre o Fim (ou fins) mas no qual encontras com a objectividade que escapa a quem cria, a recuperação desta ideia de busca identitária mas mais suavizada –o tal olhar mais afetuoso.

Retrospectivamente, talvez estes dois filmes abram e fechem um ciclo que regista o meu percurso de reconciliação com a minha identidade e, desse fecho, nasce o momento de olhar para o outro: a comunidade portuguesa emigrada em “Famille FC“. A câmara gira 180º e dá-se uma rutura, que penso ser temporária, com a forma e os métodos dos anteriores conservando, no entanto, a tal questão identitária, fator que me une a esta comunidade. Isto porque acredito que quem atravessa a experiência de emigração passa a habitar um território identitário intermédio do qual nunca se sai verdadeiramente.

Em termos mais gerais, o que achas que define uma identidade nacional? Há o depoimento, por exemplo, de um dos seus entrevistados (Mickael Rafael) que disse “não ter documentos franceses” e que o facto de “viver na China não torna ninguém chinês”. 

Penso que essa frase dita pelo Mickael Rafael é muito feliz e definidora do que é uma identidade nacional, e talvez seja tanto quanto posso dizer sobre o tema. O meu papel enquanto realizador não foi encontrar respostas mas sim mostrar a sua expressão nas comunidades. A resposta à definição de uma identidade nacional parece-me quase inalcançável tal é a sua complexidade e abstração –qualquer resposta que se encontre conduz-nos sempre a mais questões e perdemos-nos num fractal infinito.

Também as suas múltiplas apropriações indevidas fazem-nos ganhar alguma distância. Talvez uma sua situação que posso emprestar à resposta que encontrei no filme seja o da substituição, naturalmente não total, dos rituais e símbolos nacionais pelos do futebol, a maior identificação com a selecção que com o país –ou, talvez sendo mais preciso, a importância da selecção nacional para a manifestação e preservação de uma certa ideia de nacionalidade portuguesa.

Os emigrantes não sabem que são os governantes portugueses,com exceção feita ao Presidente Marcelo, mas conhecem de cor o nome dos jogadores portugueses. A relação com o país é polarizada –desejam o país mas desdenham dele – aliás, quem nunca fez isso? No entanto, a seleção não desilude, nem nas derrotas.

Foi curioso encontrar muitas crianças já de segunda e terceira geração que apesar de terem já nascido em França e não falarem uma palavra de português têm o desejo de representar a selecção nacional. Curioso, não é? No entanto, definições para a identidade nacional e para a ‘inexplicável teimosia de ser-se português’, para usar uma expressão de Tolentino de Mendonça é, como disse, inalcançável. Talvez um sociólogo arrisque uma definição; eu não.

O convívio das associações ligadas aos clubes remetem a um modo de existência coletiva mais típico do interior português. Acha que viver num grande centro urbano (Lisboa, por exemplo) representa também uma forma de desenraizamento?

Sim, remete a um modo de existência colectiva mais típico de um interior mais rural. Aliás, é surpreendente perceber que há emigrantes portugueses que conheceram Paris antes de Lisboa. A propósito deste viver, uma ideia muito acertada que ouvi do José Vieira, foi a de que todas as Associações e celebrações com que nos cruzamos eram uma tentativa de recriação da aldeia deixada para trás em Portugal.

A esse respeito, a rodagem do documentário foi feita nos interstícios da minha ocupação em Portugal –várias idas e regressos aos fins-de-semana– e não guardo memória de ter estado em Paris, somente a sensação de que apanhei vários aviões no Porto que aterraram algures no interior e Portugal. Estes espaços e seus rituais são vitais para a comunidade encontrar sentido e um sentimento de pertença e de escala humana num mundo complexo e estranho, sentimento que é até apreendido também por quem não tem origens portuguesas – como o caso do Liliam Thuram naquele trecho da sua biografia.

Como corolário, respondo afirmativamente à ideia de que viver num grande centro urbano é também uma forma de desenraizamento, e essa será uma das razões para que haja hoje uma nova consciência da vida nas cidades e se estejam a pensar os seus modelos –questões como a cidade dos 15 minutos, etc.

Como é que teve contato com essa realidade do futebol amador em França e como decorreu em termos de produção?

Fiquei a conhecer o fenómeno através de um artigo escrito pelo historiador Vítor Pereira com o título ‘Os Futebolistas Invisíveis’, de onde roubei a citação do Thuram, e que mencionava a existência de mais de 200 clubes de futebol de origem portuguesa nos escalões amadores. Isso foi algo  inesperado e conduziu a um natural desejo de filmar. Sabia que existiam dois clubes portugueses em França –o Lusitanos de Saint-Maur e o Créteil-Lusitanos– mas não fazia ideia da escala do fenómeno.

O artigo de Vítor Pereira serviu como mapa para definir um plano de rodagem e desenhar uma série de ideias de cenas com mise en scène muito específicas sem nunca ir ao terreno. Depois, como é frequente no documentário, fomos atropelados pela realidade. A minhas limitações de tempo e de orçamento – os apoios são, como se sabe, curtos, sobretudo quando se filma no estrangeiro – levaram a que a rodagem fosse feita no tempo de uma ‘repérage’ com somente duas pessoas, eu e o José Vieira – um realizador português que tem trabalhado imenso a emigração portuguesa.

Deslocávamo-nos a um clube, num jogo, numa sede, numa celebração, num torneio, que não conhecíamos de todo a começávamos a filmar de imediato, por vezes em contexto de muita agitação e ruído… Retrospetivamente, se por um lado há um sentimento de frustração pela fuga à ideia original, há por outro satisfação e surpresa por ter-se conseguido fazer um filme em condições tão adversas e precárias. É quase um milagre.

A montagem foi muito demorada exatamente pela escassez de material e para garantir que o filme fosse justo com as pessoas e instituições que nos receberam de forma tão acolhedora e entusiasmada. Felizmente terminou a tempo de estrear em 2021, ano de uma efeméride: vários dos clubes representados, os mais antigos, celebram este ano 50 anos de existência. 

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