Domingo, 5 Maio

Sibéria: a jornada mais radical de Abel Ferrara

O filme chegou aos cinemas nacionais a 30 de dezembro

Concorrente ao Urso de Ouro de 2020, “Sibéria“, de Abel Ferrara, despertou paixões e ódios na 70.ª Berlinale com a sua verve metafísica de busca espiritual. O exercício filosófico mais caudaloso do realizador de “Bad Lieutenant- Polícia sem lei” (1992) em anos, essa produção de 92 minutos traz Willem Dafoe no papel de Clint, dono de uma taberna numa imensidão gelada que vive uma série de peregrinações, de corpo e de alma, à cara de harmonia.

“Na captação do som, tento sempre captar as respirações, entre as músicas. Aqui, o som reporta a um conceito de exílio e de solidão”, disse Ferrara ao C7nema, esbanjando um bom humor incomum e pedindo aplausos para os colegas de equipa que não estavam à mesa com ele. “Trabalho em trupe, em equipa, trocando ideias num processo criativo que leva o seu tempo“.

Houve quem saísse exaurido e irritado de “Sibéria“, na sua projeção para a imprensa, em especial após uma sequência na qual um peixe fala. Tudo é parte de um engenho cosmológico do cineasta para retratar uma cruzada em rota para a espiritualidade. A fotografia de Stefano Falivene brinca com as sombras e luzes, em tons de vermelho, conforme Clint (Dafoe, numa imponente composição) gravita pelo mundo, indo da neve ao deserto. Nas suas andanças, cruza-se com figuras misteriosas, como uma grávida sedenta por vodca e carinho.

Sou amigo do Abel há muitos anos e ele é um artista que constrói o filme no set, na vivência connosco, com os técnicos. E não são as trevas que me atraem a filmes como os dele e, sim, o desafio“, disse Dafoe, que dança ao som de Del Shannon numa das sequências de maior catarse da última Berlinale.

Da mesma forma como Philippe Garrel (concorrendo aqui com “Le Sel Des Larmes”) é fruto tardio da Nouvelle Vague, Ferrara é um ramo do fim de colheita na comparação com os grandes realizadores revelados nos anos 1970. Só em 1979 ele chamou à atenção, com “Driller Killer. Desde então, mudou muito, indo de narrativas mais violentas, como “King of Nova York” (1990), a estudos de personagem como “Tommaso” (2019). Mas “Sibéria” une o melhor dos dois mundos, indo da virulência do passado à linha contemplativa das suas longas-metragens mais recentes, como Pasolini (2014).

É um filme que renova a sua marca e mexe com o peito da plateia na dimensão inquieta do existencialismo.

(artigo originalmente escrito em fevereiro de 2020)

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