Sexta-feira, 10 Maio

«Us»(Nós): dissecando as duas revelações

 
Nós (US) marca o regresso de Jordan Peele, o realizador do aclamado Foge! (Get Out), obra que arrecadou o primeiro Óscar de Melhor Argumento para um filme de terror, e é considerado – junto como Hereditário – como um dos melhores do género da década. Para já, Nós revelou-se um enorme sucesso comercial (foi a maior estreia de um filme não franchisado desde Avatar) e junto da crítica norte-americana (mais de 90% no Rotten Tomatoes), e tem provocado muita conversa em torno da sua revelação final e das suas implicações.
 
No entanto, no calor da conversa e do entusiasmo do filme, muitos espectadores têm descoberto uma potencial segunda revelação, deveras mais inquietante ainda. Vamos primeiro dissecar a mais evidente.
 
– Atenção aos spoilers –
 
 
Quem é Adelaide e quem é Red?
 
A premissa que víamos no trailer de Nós mostrava-nos como Adelaide Wilson e a sua família eram aterrorizados na sua casa de praia por uma família exatamente igual a eles, liderados por Red – uma mulher exatamente igual a Adelaide. No entanto, depressa no filme percebemos que o que está em causa é muito maior, e que a escala do terror é global e não individual.
 
Nos momentos finais do filme, descobrimos que a mulher que vivia na superfície era Red e que a mulher que vivia nos túneis com os demais duplicados era a verdadeira Adelaide. Ou seja, em 1986 (o prólogo do filme), Adelaide não tinha apenas visto uma doppelgänger sua. Tinha sido raptada e deixada nos túneis com os clones, enquanto a sua dupla (Red) tinha voltado para a praia e para junto dos pais.
 
Esta revelação tem duas implicações grandes no filme. Por um lado, percebemos que o verdadeiro medo da mulher de família não era o trauma de ter visto algo que não percebia, mas sim o medo do regresso de algo que ela tinha a certeza que existia. Ela, Red, tinha medo de ir à praia onde estava a entrada para o mundo de túneis onde viveu uma infância de privação. E tinha medo que a criança original, Adelaide, um dia voltasse para ajustar contas.
 
 
Por outro lado, também percebemos que a revolta dos duplicados não é meramente acidental. Se estes clones viveram toda a vida em túneis a repetir o que as pessoas reais faziam, Adelaide não. Ela foi uma criança normal que foi forçada a ficar a fazer isso. E isso explica porque ela é a única dos duplicados que fala enquanto os outros apenas grunhem. E porque os organiza em torno de referências datadas de uma infância oprimida: os duplicados atacam a superfície vestidos de vermelho como Michael Jackson em “Thriller” (tal como a T-Shirt de Adelaide vestia na noite em que desapareceu) e o seu plano para mostrar ao mundo que as pessoas sombra existem é recriar o “Hands Across America” de 1986 que vira na televisão (uma iniciativa de solidariedade que tentou ligar a costa americana de uma ponta a outra com um cordão humano, e que foi um grande fracasso).
 
Esta revelação dá um lado ainda mais triste à narrativa. Se os duplicados nunca puderam sonhar, Adelaide teve que viver como eles sabendo tudo o que lhe roubaram.
 
Como o site americano Collider denotou Nós consegue a proeza de o “Porquê” ser muito mais inquietante que o “Como”. O conceito de ficção científica do filme é extremamente ambicioso e assustador– mas a motivação de Adelaide é ainda mais inquietante.
 
No entanto, todo o debate sobre a troca de Adelaide e Red, levou a que muitos espectadores levantassem a questão sobre se haveria um segundo twist no filme.
 
 
Jason e Pluto tinham sido trocados no passado?
 
Quando o filme passa para os dias de hoje, seguimos a família Wilson de regresso à casa de férias. Eles mencionam que não tinham voltado lá desde um incêndio que podia ter destruído a casa, no verão passado.
 
Quando conhecemos os duplicados, o duplo de Jason – o filho mais novo – é bastante diferente dos demais. Ele usa uma máscara e caminha como um cão, mas ele nunca é violento nem tenta magoar ninguém. É afetivo com a mãe (Red, na realidade, Adelaide) e pede-lhe festas. E analisando diversas cenas do filme, parece que Peele está-nos a tentar sugerir – à luz da revelação Adelaide/Red – que Jason e Pluto podem também ter sido trocados. Vamos analisar algumas cenas:
 
– Quando a família está a comer, há duas personagens que não comem. Adelaide (na realidade Red) está a comer morangos e é referida como sendo vegetariana. Considerando que os duplicados apenas comem coelho cru toda a sua vida, a aversão à carne por parte dela no mundo real é credível. Mas Pluto também se recusa a comer carne, e eles referem que ele é muito difícil na hora de comer. A cena prolonga-se para as personagens dizerem que ele não tem sido “o mesmo desde que a avó morreu” e que está diferente. O pai inclusive menciona ele sendo, desde o verão anterior, como secretivo, quase nunca falando e usando linguagem diferente do que costumava. De que Jason mudou no verão passado.
 
 
– Na praia, antes de se afastar, Jason brinca a construir túneis o que leva à irritação das outras crianças. Considerando que os duplicados vivem em túneis, seria credível que as suas brincadeiras fossem de encontro ao que conhecem. 
 
– A cena do armário é outra que levante bastantes questões. Várias vezes é dito que Jason sabia fazer um truque com o isqueiro e que não consegue. Quando ele fica a brincar dentro do armário com Pluto, este consegue fazer o truque do isqueiro. Sendo um truque algo difícil de mimicar, é credível dizer que só o verdadeiro Jason soubesse fazer o truque. Sabia-o fazer antes, e depois da troca e de ir viver com os duplicados, quem ficou na superfície, Pluto, não sabia. Sendo um truque com um isqueiro isso poderia também explicar porque Jason (o original) tinha ficado queimado na cara e quase provocado um incêndio. Para além disso, mais uma vez, de notar como o duplicado não é violento nem agressivo com a criança da superfície.
 
– Quando a família anda de carro, Adelaide (na realidade, Red) tenta convencer o filho a estalar os dedos ao ritmo de “I Got Five On It” que toca no rádio. Mas ele não consegue acompanhar o ritmo nem estalar os dedos direito. Considerando a descoordenação bruta dos duplicados, se na realidade o filho no carro fosse Pluto, ele poderia ainda não conseguir acompanhar músicas. Para somar a esta cena, quando no final a família enfrenta Pluto (ou seja, Jason) este consegue estalar os dedos ao ritmo da música. 
 
– Durante o filme, Jason e Pluto utilizam máscaras. Pluto aparentemente utilizaria para ocultar o seu rosto queimado – mas porque utilizaria Jason? Considerando que os duplicados são instintivamente forçados a repetir o que os originais fazem, se o verdadeiro Jason usasse uma máscara apara esconder a cara queimada, então Pluto – mesmo vivendo na superfície e com a cara direita – utilizaria uma máscara mesmo que sem motivo.
 
 
A teoria, no entanto, levanta uma questão grande: se quando houve o incêndio no verão anterior, Pluto trocou de lugar com Jason, quem teve a iniciativa?
 
Pode Pluto ter saído dos túneis e procurado Jason, raptado-o e trocado de lugar com ele – como Red fez com Adelaide.
 
Ou pode a verdadeira Adelaide – que vivia nos túneis – o ter feito. Isso explicaria porque o falso Jason (ou seja Pluto) sabia falar inglês mas dizia muitas asneiras (havia sido ensinado a falar inglês nos túneis por uma mãe que deixara de ter com quem falar quando era criança pequena). E explica também porque Adelaide é benevolente quer com Jason quer com Pluto na forma como os trata, quando não o é nem com os demais clones nem com os originais.
 
Com um conteúdo assumidamente complexo e misterioso, Nós marca uma entrada muito relevante no espectro do cinema de terror comercial e dos grandes filmes de Hollywood. Mais do que ser um dos poucos que não integra nenhum franchise, é um filme que também não cumpre de forma previsível a história do seu trailer. E mais – levanta questões e debates que deixam os espectadores a falar sobre ele. Para muitos a grande questão é: na cena final, o que inquieta Jason é saber que a sua verdadeira mãe é um clone, ou é ter medo que ela saiba que ele também é?
 

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